Historicizando as canções

“É Preciso Ter Coragem Pra Acabar Com Essa Besteira”: A Música Brasileira e a Ditadura Civil-Militar

quinta, 04 de abril de 2024

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Entre o dia 31 de março e 1 de abril os militares brasileiros orquestraram um golpe de Estado que resultou na deposição do então presidente João Goulart, a ditadura teve apoio do governo estadunidense que tinha o receio que acontecesse em nosso país o mesmo que aconteceu em Cuba. Hoje nos livros escolares veremos que a ditadura foi de 1964 até 1985, contudo, existem debates na academia sobre essa periodização, alguns argumentos são que a censura só se encerrou em 1988, no mesmo ano foi promulgada uma nova constituição, assim como eleições diretas.

O intuito desse texto é apresentar algumas canções desse período e mostrar como canções podem ser fontes para se discutir o passado, em especial a história do Brasil, e como as artes fazem parte da política.

A ideia de MPB que se tem hoje em muito vem do período da ditadura civil-militar, a MPB é tratada como um grupo que foi resistente aos militares, fazendo canções engajadas questionando o governo e sofrendo com a censura. Artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque, Elis Regina e muitos outros são lembrados como heróis desse período. Eram artistas oriundos do meio universitário e em alguns casos da classe média e elite intelectual do país, enquanto isso artistas vindos de segmentos mais proletarizados e com sucesso nesses mesmos segmentos foram taxados de cafonas e alienados, artistas como Waldick Soriano, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Fernando Mendes, Odair José e muitos outros. Não se pode esquecer também do rock nacional da década de 1980, na cabeça de muitos a repressão, censura e canções com mensagens políticas ficaram somente da década de 1970. Além do mais, a década de 1980 é lembrada como “a década perdida”.

Por muitos anos esses artistas foram jogados para debaixo do tapete, sempre ocultados ou citados com desprezo pela historiografia musical sobre o período da ditadura, para se ter uma ideia apenas em 2015 tivemos a primeira dissertação de mestrado, na área da História, sobre o Odair José, intitulada “Ame,assuma e consuma: Canções, censura e crônicas no Brasil de Odair José (1972-1979)” de autoria do historiador Ivan Lima Cavalcanti e somente em 2023 tivemos a primeira tese de doutorado sobre Odair, “Sucesso, resistência e censura: amor e politização popular através da trajetória e obra de Odair José (década de 1970)” do também historiador Eder Aparecido Ferreira Sedano. Além desses trabalhos acadêmicos tivemos ano passado o lançamento da biografia do Nelson Ned, “Tudo passará: a vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção” de André Barcinski.

Parece muito, mas é pouco perto da vasta produção que endossa a narrativa da MPB, entretanto, é um começo, é um trabalho de guerrilha questionar e debater uma narrativa cristalizada e tratada como algo sagrado.

Em 1976, Raul Seixas lançou seu famoso disco “Há 10 Mil Anos atrás” e uma das faixas do trabalho se chama “Eu Também Vou Reclamar”, onde nosso roqueiro ironiza a canção de protesto, uma das bases da narrativa da MPB:

“Mas é que se agora pra fazer sucesso
Pra vender disco de protesto
Todo mundo tem que reclamar
Eu vou tirar meu pé da estrada”

Raul Seixas - Eu Também Vou Reclamar (Videoclipe Oficial)

Ainda falando de baianos, em 1983 a banda de punk Camisa de Vênus lançou seu primeiro disco, com título homônimo o trabalho se inicia com a canção “Passamos Por Isso”:

“O Ambiente é tão sério
Não há lugar para ação
"Vê se conserva suas raízes", eles disseram
"Camisa de Vênus é alienação"”

Como já foi apontado no texto sobre Ritchie, em um período do nosso país a guitarra elétrica era vista como uma ferramenta de dominação cultural estrangeira e o rock seria uma música alienada e alienígena e os artistas engajados deveriam fazer um som ligado às raízes culturais do nosso país.

Camisa de Vênus - "Passamos por isso" (ao vivo no "Programa Livre")

Em 1976, Fernando Mendes lança a canção “A Menina da Calçada”, nessa canção o eu lírico se apaixona, aparentemente, por uma prostituta:

“Tão sozinha na calçada
Sem ninguém pra conversar
Esperando por alguém
Que talvez nem vai chegar”

Fernando Mendes - A Menina da  Calçada

Em 1975 Wando lança um disco homônimo, nessa época ainda não era o “cara das calcinhas”. na capa do disco vemos ele sentado com um violão, era uma estética mais parecida com o que era aceito como MPB mas ele não conseguiu fazer parte da panela e virou o Wando que conhecemos, a canção que chama atenção nesse disco se chama “Moça”, narra a história de um cara que se apaixona por uma moça que não é mais virgem, Wando no documentário “Eu Vou Rifar Meu Coração” conta que fez essa composição como forma de questionar esse dogma cristã que os homens deveriam ficar somente com moças castas:

“Eu quero me enrolar nos teus cabelos
Abraçar teu corpo inteiro
Morrer de amor
De amor me perder
Eu quero, eu quero, eu quero”

Wando - Moça - Imagens e áudio em HD - Legendado

Nesta coluna já foi discutido como algumas canções do repertório do Odair José e Agnaldo Timóteo questionaram a moralidade vigente durante a ditadura. Dessa vez escolhi a canção “Quem é”, composição de Silvio Lima e Maurílio Lopes, gravada por Agnaldo Timóteo em seu disco “Te Amo Cada Vez Mais” de 1978. Nessa linda canção nosso e lírico questiona se existe alguém que nunca sofreu por amor:

“Quem é que não sofre por alguém?
Quem é que não chora uma lágrima sentida?
Quem é que não tem um grande amor?
Quem é que não chora uma grande dor?”

Agnaldo Timóteo canta ao vivo - Quem é?

Alguns anos antes, especificamente em 1970, Nelson Ned fez o mesmo questionamento em sua canção “Eu também sou sentimental”:

“Quem é?
Que não teve na vida
Um problema de amor
Uma desilusão?”

Eu Tambem Sou Sentimental

Waldick Soriano em 1972 lançou talvez aquela que seja a sua composição mais famosa (mas não a única, “Eu Não Sou Cachorro, Não”, um belo exemplar de uma canção dor de cotovelo:

“A pior coisa do mundo
É amar sendo enganado
Quem despreza um grande amor
Não merece ser feliz
Nem tampouco ser amado”

Aqui devo citar a excelente análise da canção feita por Paulo Cesar de Araújo em seu livro “Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar”, ele não nega que a música é sobre uma desilusão amorosa mas nos lembra que as canções podem ser resignificadas pelo público, o refrão “Eu não sou cachorro, não/ Pra viver tão humilhado/Eu não sou cachorro, não/ Para ser tão desprezado” ganha uma nova conotação sabendo que quem ouvia e cantava essa música era a classe trabalhadora que era e continua sendo constantemente humilhada e usa como exemplo dessa ressignificação a famosa canção “Opinião”, famosa na voz de Nara Leão que virou um hino de protesto mas não foi feita com esse intuito.

Waldick Soriano - Eu Nao Sou Cachorro Não (Ao Vivo)

Waldick Soriano gravou originalmente "Tortura de Amor" em 1962 mas ela só fez sucesso quando foi regravada em 1974 e foi censurada, por conta da palavra tortura. É preciso lembrar que com o Ato Institucional 5 a tortura foi instaurada como um instrumento de repressão, para combater aqueles que o estado brasileiro considerava subversivos, os militares não queriam essa palavra no ouvido da população, isso ajuda a entender o motivo da censura.

“Hoje que a noite está calma
E que minh'alma esperava por ti
Apareceste afinal
Torturando este ser que te adora”

AGNALDO TIMÓTEO - TORTURA DE AMOR

Odair José foi um dos compositores mais censurados durante o governo militar, foi um dos artistas que mais vendeu disco no país na década de 1970, nos últimos anos sua obra tem sido redescoberta e angariando fãs mais novos, o próprio se considera um repórter musical, fez diversas crônicas sobre o cotidiano brasileiro, mostrou que existe beleza no ordinário e que o amor faz parte da vida, com suas alegrias e frustrações.

Em 1975, Odair José questionou o casamento com a música “Na minha opinião (Eu te quero, te adoro, te gosto):

“Na minha opinião
O importante é se querer
Assinar papel pra que
Isso não vai prender ninguém”

"Na minha opinião" - Odair José no Estúdio Showlivre 2016

O que não falta são canções que servem para debater o período de repressão que o país viveu, mas o importante hoje é apresentar para os leitores um repertório diferente do que geralmente é mostrado quando se fala da música durante o período ditatorial. Tradição é invenção e não devemos aceitar as narrativas como dogmas que não devem ser questionados.


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