Ed Motta – Dwitza (2002)
A concepção que perpassa todo "Dwitza" de Ed Motta é a mesma do jazz dos anos 60. Quer dizer, trata-se de uma música de sessão onde não há começo, meio e fim muito bem delimitados como reconhecemos em canções com letra e melodia. A ideia é reunir sons sem contornos específicos ou uma caligrafia definitiva.
Trata-se da new thing que mais tarde será reconhecida sob rubrica do free jazz. Mas se engana o ouvinte que acredita ser essa música uma confusão total ou apenas um amontoado de sons sem nenhuma coesão. Nesse tipo de música existem regras nas quais algumas estruturas e formas são combinadas de antemão. No entanto, não há uma maneira correta de executá-las. Cada músico realiza seus solos ao seu modo ou contribui com a banda à sua maneira.
Um Dom Pra Salvador é uma belíssima homenagem ao pianista Dom Salvador, ninguém menos do que o inventor do Samba-Funk. Um tema bem marcado que parece ter sido construído tendo em vista o baixo como principal pivô. O improviso feito pelo saxofonista Lelei é uma preciosidade que merece ser escutado várias vezes e com muita atenção. O título da segunda música, No Carrão Eu Me Perdizes Na Consolação carrega certa sagacidade característica do compositor. Além disso, a cena sonora produzida por Ed parece de fato retratar alguém perdido em um carrão em alta velocidade na Rua Consolação ou na Alameda Perdizes. Consegue acompanhar o trajeto ou se perde na primeira curva?
Sus-tenta pode facilmente ser incluída na categoria Blaxploitation, isto é, a estética do cinema negro norte-americano e toda a sua produção, na qual o protagonismo negro é a chave de leitura. A levada bossa-nova em Doce Ilusão revela a elegância e alto nível musical e lírico dos compositores. Uma parceria entre Mottas que deu muito certo.
O tema que parece possuir algum texto em inglês é Lindúria, mas não se engane. Ed esboça algumas palavras que lembram algo com significado semântico. No entanto, a busca pelas palavras está em outro registro. A divisão criada por Ferdinand de Saussure em seu Curso de Linguística Geral (1916) se dá entre La Langue (Língua) e Parole (Fala). Ed propõe aqui algo mais próximo da segunda categoria, pois através dessas palavras esboçadas, a música não mostra nenhuma língua, nenhum sentido, apenas sons produzidos pela voz humana. A música que aparece na sequência, Valse Au Beurre Blanc acompanha a mesma ideia da anterior, no entanto, as cenas de agora se passam em Paris. Música de realejo, violinos delicados e um final com referências ao Bel Canto criam uma atmosfera sem igual.
A liga que envolve toda a música de Moacir Santos pode ser ouvida em Amalgasantos. A marca da arquitetura sonora do genial maestro pernambucano é reproduzida com equivalente característica. Todas as notas, marcações, appoggiatura são escolhidas com muita sabedoria. A voz de Leila Maria, consagrada cantora carioca, pode ser apreciada em A Balada do Mar Salgado. Um hino aos balanços do pélago infinito e as surpresas reveladas por ele.
Coisas Naturais é a segunda música do disco que possui letra. Feita em parceria com Ronaldo Bastos – um dos grandes representantes do Clube da Esquina e membro do movimento carioca Nuvem Cigana – a canção parece respirar em meio ao disco com temas densos e vasta polirritmia.
Aos ouvidos mais atentos e àqueles versados numa escuta laboriosa, temos um prato cheio na faixa Malumbulo. Logo no primeiro ostinato rítmico criado em compasso 6/8 encontramos menções, um tanto quanto familiares, ao álbum Coisas (1965) do já citado Moacir Santos. Arriscaria dizer que, entre todas as Coisas de Moacir, Ed Motta se inspira mais profundamente na Coisa nº 6. Certamente, essa meia dúzia de coisas ditas aqui é uma pequena parcela do que podemos ouvir e referenciar ao longo da música.
O termo música descritiva ou música programática pode soar estranho a maioria das pessoas. Basta ouvir Madame Pela Umburgo (No Seu Teatro Dos Olhos) para que o conceito se torne objeto. O cravo tocado no início dita o clima do que está por vir. Uma paisagem sonora pintada por quem domina todos os tons da cromática paleta musical.
Em Cervejamento Total – tema com apenas dois minutos – é apresentado ao ouvinte um ambiente festivo com direito a escola de samba e tudo mais. Ainda com o sarrafo lá em cima, Papuera chega repleto de acentos rítmicos. O balanço fica ainda mais acentuado à medida que a música se desenrola. Instrumetida encerra a disco com um time pra lá de completo. São dezoito músicos entre trompa, oboé, clarinete, clarone, tuba, trompete, trombone, saxofone alto, saxofone tenor e saxofone barítono. Fora a formação tradicional, baixo, bateria e piano – figurado aqui sob o piano rhodes, um misto de celesta, vibrafone e piano.
"Dwitza" é contra todo tradicionalismo sonoro e clichês que engessam nossos ouvidos. Esse manifesto contra a justeza das regras tradicionais funciona como uma ode à liberdade, na qual essa new thing assume uma questão política muito mais intensa do que qualquer discurso proferido. Nas palavras do próprio músico em entrevista ao Sesc Brasil Instrumental em 2010: “o que eu tenho para dizer não está nas palavras, o que eu tenho para dizer não está na poesia, nunca esteve”.
Ficha Técnica:
Agostinho Silva: Acordeon
Alberto Continentino: Baixo
Aldivas Ayres: Bombardino; Trombone
André Rodrigues (André Negão): Percussão
Chico Batera: Percussão; Tímpanos
Dener de Castro Campolina: Contrabaixo
Don Chacal: Percussão
Ed Motta: Piano Wurlitzer; Guitarra Semi-Acústica; Piano Fender Rhodes; Voz
Eliezer Rodrigues: Tuba
Elione Alves de Medeiros: Fagote
Fábio Fonseca: Arp Strings; Arp 2600; Arp Odyssey; Arp Omni II
Fabrício Claussen: Voz
Francisco de Assis Soares da Silva: Trompa
Gilmar Ferreira: Trombone
Harold Stephen Emert: Oboé
Henrique Band Saxofone Barítono
Idriss Boudrioua : Saxofone Alto
Jaime Alem : Violão 12 Cordas
Jaques Morelenbaum: Violoncelo
Jessé Sadoc: Flugelhorn; Mellophone
João Luiz Areias: Trombone
Jota Moraes: Sinos; Piano Fender Rhodes;Vibrafone
Lelei: Saxofone Soprano; Saxofone Tenor
Luciene Portel: Trompete
Marcelo Fagerlande: Cravo
Marcelo Martins: Saxofone Tenor; Flauta
Marcelo Salazar: Bongo
Moisés Santos: Clarone
Mônica Maciel: Voz
Nelson Oliveira: Trompete
Paulinho Guitarra: Guitarra
Paulo Mendonça: Trompete
Philip Doyle: Trompa
Renato Fonseca: Clavinete; Órgão
Renato Massa: Bateria; Blocos de Madeira; Cowbell; Pratos;
Ricardo Amado: Violino
Sidinho Moreira: Congas; Percussão
Teco Cardoso: Saxofone Barítono
Zé Canuto: Saxofone Alto
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