Amigo ao Peito

Egberto pelo Mundo

sexta, 20 de julho de 2018

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Estava em Nova Iorque, um dos locais que mais amo no mundo, caminhando pela 5ª avenida com Egberto Gismonti. De repente, como que caiu uma ficha, parei e pensei:

– Estou em Nova Iorque, caminhando pela 5ª avenida com o Egberto Gismonti!

Virei para Egberto e declarei:

– Estou em Nova Iorque, caminhando pela 5ª avenida com o Egberto Gismonti!

Ele me olhou com uma cara de quem estava lidando com algum desequilibrado, com uma certa razão. Tive que explicar, dizendo que minha vida era muito estranha, que aconteciam coisas que poucos anos antes eram inimagináveis. Já tinha visto um Papai Noel trocando de roupa num elevador, o Homem Aranha bêbado num banheiro de shopping, e ele ficou me olhando com uma certa piedade, temendo pela minha sanidade, talvez. Fui salvo pela coincidência, típica de minhas histórias, de encontrar um casal amigo passeando por ali naquela hora.

O que eu quis dizer é que não é usual você sair passeando em Nova Iorque com um dos maiores músicos do mundo. E que se me dissessem que isso iria acontecer uns poucos anos antes, quando nem o conhecia, eu diria que seria impossível. 

Pois o conheci reparando um seu violão destruído por uma companhia aérea. Sabia de antemão que ele havia me roubado uma afilhada, a cantora Alice Passos, que também o chamava de padrinho. Sem nenhuma intimidade com ele, acusei-o do roubo e exigi satisfações. Resolvemos dividir a afilhada em questão, salomonicamente, e fomos nos tornando amigos. Com o tempo, me convidou para viajar com ele, para garantir a integridade de seus violões e passamos a conviver mais amiúde. 

Viajar com Egberto é uma coisa muito interessante. A gente aprende música mesmo que não queira, cada passagem de som é uma aula. E em todos os locais, os músicos se alvoroçam e o cercam, querendo aprender. Uma vez vários estavam reunidos à sua volta, ele no piano mostrando a polirritmia: com uma das mãos tocava um compasso ternário, com a outra um quaternário, e variava. Os músicos boquiabertos, nem piscavam, e ele concluiu:

– Bacana, né? Mas não serve para nada!

Ficaram todos meio assustados, sem jeito, se entreolhando, aí ele emendou com uma música aplicando a tal “inutildade” e as bocas todas se abriram de novo.

Apesar de sua estatura mundial, Egberto não tem exigências de camarim, não pede 50 toalhas brancas nem frutas da Mongólia Ocidental. Pede um piano entre 4 ou 5 opções, um microfone nas mesmas condições, e fornece um mapa de palco, mostrando onde cada elemento deve estar (coisa complicadíssima: Piano, banco do piano, banco do violão). Pois nos anos todos em que viajamos juntos, praticamente NUNCA as coisas estavam como deviam ser. Ou era um piano fora das especificações, ou tudo fora do lugar... Judicialmente ele poderia simplesmente virar as costas e ir embora, estava no seu direito, havia contrato assinado. Mas havia público, e isso sempre foi sagrado para Egberto. Então toca a fazer o que mais se odeia, improvisar para as coisas funcionarem. Isso no mundo todo, com raras exceções. Claro, há locais onde as coisas funcionam bem: na MIMO de Paraty, por exemplo, deu tudo tão certo que a igreja onde se deu o recital estava lotada; do lado de fora, uma multidão igual ou maior. Depois de um recital estafante, de mais de uma hora e meia, se ofereceu para tocar tudo de novo para o público que ficara de fora, o que não foi possível por questões de organização e segurança. Respeito ao público é coisa que a gente sempre ouve falar, mas com ele é, como já disse, sagrado:

– O sujeito trabalha o dia todo, corre para casa, toma um banho, come alguma coisa correndo, encara um engarrafamento, dificuldade para estacionar e vem me ver; eu não tenho o direito de não dar o máximo para essa pessoa! 

Outra frase comum é: Palco não é lugar de problema!

Vi isso de perto logo da primeira vez em que o assisti o acompanhando: estávamos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, comendo sanduichinhos (adoro roubar comida de camarim!), quando achei que era hora de me mandar para a plateia, para ele “se concentrar”.

– Me concentrar pra quê? Já tô concentrado!

E isso eu testemunhei de forma mais incrível num recital numa cidade que não vou dizer qual é. TUDO errado. Palco desnivelado (o que é perigosíssimo com um piano de centenas de quilos), banquinho torto, som ruim, uma coisa inacreditável. Deu MUITO trabalho fazer o show acontecer, nunca tinha tido tanto estresse. Ele estava dando um justo esculacho na produção, e eu pensei: como diabos ele vai tocar com o sistema nervoso desse jeito? Pois foi subir ao palco e era o Egberto de sempre, tocando como sempre, brincando como sempre. Terminou o show, ele desceu do palco, me abraçou, e antes de voltar para o bis falou, acho que reconhecendo o esforço do dia todo:

– Essa é pra você.

E tocou Água e Vinho, uma das minhas favoritas. Talvez A favorita. Foi um presente que não veio embrulhado, não custou dinheiro, mas não vou esquecer nunca. A vida, às vezes, é muito boa. 


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