Elza, Garrincha e algumas coincidências
Uma Última Homenagem a Quem Cantou Até o Fim
Uma estrela da nossa música foi brilhar em outro plano nesse janeiro de 2022. Elza Soares, cantora e figura indispensável na nossa cultura, nos deixou exatamente 39 anos após a morte do amor de sua vida, Garrincha, falecido também em um 20 de janeiro, só que em 1983. Coincidência? Destino? Talvez nunca saberemos. Entretanto, coincidência também é a relação desses dois com alguns problemas na nossa sociedade.
Desde muito pequena, uma criança nascida no Brasil já percebe uma paixão nacional inexplicável pelo futebol e pela música – em especial um dos ritmos mais brasileiros de todos, o samba. Apesar de essa criança não se identificar com nenhuma dessas duas paixões, ela vai certamente se deparar com um jogo de futebol passando em um bar – durante Copa do Mundo então, nem se fala –, com o vizinho escutando Clara Nunes ou Zeca Pagodinho em um churrasco domingo, e, querendo ou não, vai minimamente ter uma dessas duas características introjetadas nela em algum momento, se não as duas.
Agência O Globo, foto de 05/04/1966 / Reprodução
O casamento dos dois foi marcado por diversos problemas tanto internos quanto externos. Era com Elza acusada de destruir o casamento do jogador pela imprensa e pelo público, era com Garrincha refém do alcoolismo e fazendo da vida dela um inferno. Por maior ídolo que fosse na seleção ou no Botafogo, não era um modelo ideal e fiel de marido. Durante muito tempo, inclusive, não “perdoaram” Elza por ter se envolvido com Mané. Em uma série de entrevistas à Revista Intervalo, em 1963, ela mesmo comentou:
Cristo perdoou Magdalena mais depressa do que o público a Elza Soares pelo fato de querer ser feliz e fazer alguém feliz.
Como pode, uma cantora, adulta, já conhecida e vivendo um dos melhores momentos de sua carreira, passar por vilã mesmo assim? Cadê as críticas ao seu companheiro? Elza, que de uns anos pra cá passou a cantar justamente esse tipo de situação, trouxe pautas importantes como violência contra mulher, transfobia e racismo, e se mostrou antenada nos problemas sociais de seu tempo, alguns desses que ela infelizmente vivenciou de perto.
Ambos vindos do planeta fome, como ela mesmo diria a Ary Barroso em uma ocasião, vencendo diversos preconceitos e obstáculos na vida pra conseguir um sustento. Ele, salvo pelos esportes, ela, pelas artes. Dois caminhos muito utilizados ainda hoje para uma chance de ascensão social. Ora, o que mudou, então, 60 anos depois?
Coincidência?
Samba e futebol, assim como Elza e Garrincha, representam sem sombra de dúvida a nação brasileira. Porém, tirando um pouco essa maquiagem de um país alegre e quase utópico, infelizmente, violência doméstica, vícios, fome, machismo, racismo, miséria, entre outros, também. Mas essas coincidências a gente espera que passem bem longe daquela criança lá do início.
Comentários