Colunista Convidado

Em “Que Tal Um Samba?”, Ao Lado de Chico Buarque, A Sagração Definitiva De Mônica Salmaso

segunda, 01 de abril de 2024

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“Que Tal Um Samba?” não é o primeiro encontro da extraordinária cantora paulistana Mônica Salmaso com a monumental obra de Chico Buarque. Em 2007, com o afiado quinteto instrumental Pau Brasil ela gravou o CD “Noites de Gala – Samba na Rua”, desdobrado em um “Ao vivo” e um DVD, ambos editados em 2009. Mas não se podia dizer que Teco Cardoso (sax/Flauta), Nelson Ayres (piano), Paulo Bellinati (guitarra, cavaquinho), Rodolfo Stroeter (baixo) e Ricardo Mosca (bateria/percussão) fossem meros acompanhantes da cantora, na viagem pela obra de Buarque. Na verdade, com sua afinação espantosa e agilidade no manejo dos timbres e entoações melódicas, Monica, era parte instrumental da banda.

Em “Que Tal Um Samba?” a cena muda. A começar pelo convite de Chico Buarque para que ela gravasse o single com este título, a cereja do bolo inédita do novo projeto. Só a partir deste lançamento se iniciaria um show, que redundou em turnê de dez meses de sucesso, sucedida por este álbum duplo, gravado nos espetáculos, dos dias 3 e 4 de fevereiro, no Vivo Rio carioca. “Foi um presente que eu jamais imaginei ganhar na minha carreira e na minha vida. Por isso, pelo tamanho que a obra do Chico tem na minha formação musical e pessoal, eu me dediquei completamente à turnê, vivi cada momento intensamente”, contou Mônica em entrevista à Folha de Pernambuco, em dezembro do ano passado. “O repertório desta turnê contempla com bastante amplitude a obra do Chico, tanto em relação aos temas quanto em relação às fases da sua obra. Chico não colocou no repertório nenhuma música icônica-explícita como se esperava (‘Apesar de Você’, ‘Cálice’ etc.). Ao invés disso, ele chamou as pessoas para a ‘volta pra casa’. Uma casa cheia de deficiências e de coisas por fazer. Mas, a nossa identidade de volta. Essa opção, a meu ver, tocou mais profundamente a todos", completou Salmaso.

E cabe à voz dela este chamamento inicial meticulosamente bem escolhido, a cantiga “Todos Juntos”, música dos italianos Bacalov e Bardoti, letrada por Chico para seu disco infantil, “Os Saltimbancos”, de 1977: “Todos juntos somos fortes/ somos flecha, somos arco/ todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer/ ao meu lado há um amigo/ que é preciso proteger”. Com um raro precedente em 1975, quando dividiu um show/disco com Maria Bethânia, Chico desta vez abre protagonismo para Mônica no projeto, como uma espécie de reconhecimento de que se trata da mais importante cantora contemporânea do país. Ponto.

Por isso, dela são as cinco faixas iniciais (a abertura do show). Além da mobilizadora supra citada “Todos juntos”, há a voluptuosa “Mar e Lua” (“uma andava tonta/grávida de lua/ e a outra andava nua/ ávida de mar”) e a pré-ecológica “Passaredo”, parceria com Francis Hime, de 1976, com seu desfile interminável de pássaros advertidos do perigo maior: “Some rolinha/ anda andorinha/ te esconde bem-te-vi/ voa bicudo/ voa sanhaço/ vai juriti/ bico calado/ muito cuidado/ que o homem vem aí”. Seguem-se duas canções anteriormente gravadas por Mônica em seu “Noites de Gala – Samba na Rua”, o amaxixado otimista “Bom tempo”, rufado por caixa e flautas, com uma sutil citação de “A Banda”, e a heráldica “Beatriz” (parceria com Edu Lobo), desafio para vozes de grande extensão como a da cantora. Chico faz sua entrada triunfal na biográfica “Paratodos”, uma espécie de “Samba da Benção” pessoal (cita Cartola, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Jackson do Pandeiro, João Gilberto, Luiz Gonzaga, Noel Rosa, Caetano Veloso e também Rita Lee, Erasmo, Jorge Ben, Edu, Vinicius, Nara, Clara e mais). Só que em compasso de toada, “soprada por Antonio Brasileiro”, que ele “cobriu de redondilhas”, após uma breve pincelada na árvore genealógica (“o meu pai era paulista/ meu avô pernambucano/ meu bisavô mineiro, meu tataravô baiano”).

Na sequência, Chico e Mônica debulham a devastadora e salteada “O Velho Francisco”, do corrosivo refrão “vida veio e me levou” Também de um tempo remoto é a ficcionada afro “Sinhá” (parceria com João Bosco), de mote instrumental envolvente e sombrio, a respeito de um escravo castigado por ter olhado o que não podia: “Se a dona se banhou/ eu não estava lá/ por Deus, nosso Senhor”, suplica a letra. Escrita para ser entoada em contracanto, uma moda da MPB dos anos 60, a tépida marcha rancho “Sem Fantasia” debutou nas vozes do autor e sua irmã Cristina Buarque no disco “Chico Buarque Volume 3”, de 1968. Monica encarrega a voz alada de contracenar com o autor, que na época do lançamento tinha apenas 24 anos. A conjunção de vozes da furtiva “Biscate” homenageia outro dueto, que gravou a música originalmente - de Chico com a precocemente falecida Gal Costa.  Primeira composição de Tom Jobim, ainda como uma valsa chopiniana de iniciante, “Imagina” ganhou letra de Chico, que convidou Mônica para duetar com ele no disco “Carioca”, de 2006, numa prova de que o flerte vem de longe.

O compositor arremata o primeiro disco do duplo em quatro solos. O entrançado “Choro Bandido”, parceria com Edu Lobo, uma de suas preferidas. O bolero “Sob Medida” (“sou bandida/ sou solta na vida/ e sob medida pros carinhos seus”), sucesso de Fafá de Belém, uma de suas mais agudas letras escritas no feminino, que antecede “Bastidores”, outra no mesmo diapasão (“amaldiçoei/ o dia em que te conheci/com muitos brilhos me vesti/ depois me pintei, me pintei, me pintei”), que ele escreveu para a irmã Cristina, mas Cauby Peixoto se apropriou de forma arrebatadora. Também no feminino, a entrecruzada “Mil Perdões” encerra o CD 1, numa anti apoteose bem ao sabor do autor. “Te perdoo/ por contares minhas horas/ nas minhas demoras por aí/ te perdoo porque choras/ quando eu choro de rir/ te perdoo/ por te trair”.

O disco 2, na continuidade do show, fornece a 16ª música, “Samba do Grande Amor”. Ela faz parte do elenco de composições mais sarcásticas do compositor. O batuque acendrado, que convoca o coro da plateia, manda ver: “hoje eu tenho apenas uma pedra do meu peito/ exijo respeito/ não sou mais um sonhador/ chego a mudar de calçada/ quando aparece uma flor/ e dou risada do grande amor/ mentira!”. Também sarcástico é o samba seguinte “Injuriado”, levado pela dupla, (“dinheiro não lhe emprestei/ favores nunca lhe fiz/ não alimentei o seu gênio ruim”) que extrapola a revanche amorosa, para vergastar um ex-aliado que trocou de lado. Chico retoma o solo em “Tipo um Baião” e na valsa acalanto dissonante” As minhas meninas”. Esta prefacia  “Uma Canção Desnaturada”, que volta a contar com Mônica, reeditando o dueto original de Chico e a cantora Marlene, na peça “Ópera do Malandro”, de 1979.

Após a paisagística “Morro Dois Irmãos”, o compositor sola seu clássico onírico “Futuros Amantes” (“O amor não tem pressa/ ele pode esperar em silêncio/ num fundo de armário/ na posta-restante/ milênios, milênios no ar”), do disco Paratodos, de 1993. E engata mais um baião em “Assentamento”, do CD “A Cidade”, de 1998, com inspirações de Guimarães Rosa, escrita para um livro do fotógrafo Sebastião Salgado dedicado aos trabalhadores sem terra. Extraído da trilha da peça “O Corsário do Rei”, parceria com Edu Lobo, de 1985, o untuoso “Bancarrota Blues” abre espaço para o compositor surpreender a plateia com uma pequena encenação. Queixa-se de acusações de não ser o verdadeiro autor de suas obras, de comprar músicas; até que ele entra no mote da letra melíflua, “mas eu posso vender/ quem vai arrematar?” Chico aproveita o hiato para apresentar o elenco instrumental de alto gabarito e apuro nos timbres e texturas, que acompanha o duo. São eles: João Rebouças (piano e cavaquinho), Marcelo Bernardes (sopros), Bia Paes Leme (teclados e voz), Jorge Helder (baixo, violão e bandolim), Jurim Moreira (bateria), Chico Batera (percussão) e Luiz Claudio Ramos (direção musical, arranjos, regências, guitarra e violão).

Parceria rara com o tecladista Cristovão Bastos, a contra ritmada “Tua Cantiga” ensejou mais uma dessas estéreis polêmicas das redes “antisociais”, a partir dos versos “Largo mulher e filhos/ e de joelhos/ vou te seguir”, supostamente machistas. E se interpretassem literalmente o monumental “O Meu Guri”, que teve uma gravação ressignificadora de Elza Soares, talvez o tomassem como uma ode à bandidagem. “Caravanas”, com citação do exasperante “Deus lhe Pague”, não deixa dúvidas. É um retrato belicoso da desigualdade social nativa. O choque entre os bairros da nobreza à beira mar e os indesejados da favela: “Quando pinta em Copacabana/ a caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba/ a caravana do Irajá, o comboio da Penha/ não há barreira que retenha esses estranhos/ suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho/ a caminho do Jardim de Alah”.

É o momento da entrada em cena do tema central “Que Tal Um Samba?”, tabelinha entre Chico e Mônica, um samba que se oferece e se esconde, nos rolamentos insidiosos da letra, (“puxar um samba porreta/ depois de tanta mutreta/ depois de tanta cascata/ depois de tanta derrota/ depois de tanta demência/ e uma dor filha da puta, que tal?”) uma espécie de redenção de tanta adversidade, que leva a plateia, em êxtase, de roldão. “Nos shows a gente viveu o afeto coletivo, a união e a soma de forças dos nossos valores mais preciosos. O afeto é muito mais poderoso do que o embate”, discerniu Mônica na entrevista. Fecharam a tampa, sempre em duo, sob apoteose de palmas, “Maninha” (dedicada à irmã falecida do compositor, Miúcha), a burlesca marcha rancho “Noite dos Mascarados” e a "valsa” do sanfoneiro Sivuca letrada pelo compositor, “João e Maria”: “Agora eu era o rei/ era o bedel e era também juiz/ e pela minha lei/ a gente era obrigado a ser feliz”.

(Tárik de Souza) 


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