Entrevista

Entrevista Exclusiva: Jards Macalé em 80 rotações

por Caio Andrade

segunda, 13 de março de 2023

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"Como disse o João Donato: 'olha, enquanto eu tiver entrando e saindo do cemitério sob minhas próprias pernas, eu tô ótimo'. É uma piada macabra mas faz sentido."


Jards Macalé é uma figura. Completou 80 anos no início deste mês de março e continua bem-humorado e atencioso. Jogou muita bola (ou não) na infância. Construiu uma carreira bonita e de amizade não só com os da sua geração, como os nomes que foram surgindo com o passar dos anos. Afrontou os militares. O cara é simplesmente atemporal.

Por telefone, batemos um divertido papo com Jards, entre perguntas que vão desde sua infância e o início da carreira, até fatos mais recentes. E pensa numa pessoa boa de contar história? Leia a seguir:


Caio Andrade: Podemos começar do começo: como era a vida do pequeno Jards? O que ele gostava de fazer? De onde surgiu o nome “Macalé”?

Jards Macalé: Bom, o pequeno Jards nasceu na Tijuca, na Rua Pucuruvi, atual Max Fleiuss, e tinha como vizinhos Vicente Celestino e Gilda de Abreu. Dentro de casa, meu pai que gostava muito de música, minha mãe que cantava e tocava um piano maravilhoso, e minha avó também que adorava música. Então o pequeno Jards tem essa memória, da casa na Tijuca, dos amiguinhos da rua, até os 5 anos de idade quando me mudei para Ipanema.


O apelido nasceu de uma gozação, ficavam me zoando porque eu não jogava muito bem futebol, mas tinha a turma ali do quarteirão, dos quarteirões em Ipanema, que jogava. Tinha um terreno baldio, onde tinha uma mangueira no meio do terreno, e nós jogávamos futebol. Eu me atrapalhava com a árvore pra lá e pra cá e o pessoal gritava: “passa a bola, Macalé!”. "Macalé" era um jogador de futebol do Botafogo que parece que era de lua, ou ele jogava muito, ou não jogava nada, aí virou aquela zoação.

Quando virou nome artístico, o Guilherme Araújo, nosso empresário, muito mais tarde, na década de 1960, dizia que artista tem que ter ou nome inteiro, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, ou então dois nomes só, no caso, Tom Jobim. No caso, Jards, e o apelido, Macalé.


CA: Qual foi o(a) primeiro(a) grande artista que você se lembra de ter trabalhado? Como foi essa experiência?

JM: A Nara Leão…eu conheci Severino Araújo…ele era meu vizinho lá em Ipanema, e eu vivia colado nele. Fiz amizade com Chiquinho Araújo, que era da minha idade na época, filho do Severino, e um dia ele me levou à casa do pai. Tava lá tocando clarinete, estudando e tal, aí fizemos amizade, e ele me convidou para ser copista da Orquestra Tabajara. Eu fui, pra mim a Orquestra Tabajara era eu, claro [risos], mas foi uma escola maravilhosa, além de uma amizade profunda.

A Nara Leão foi uma apresentação. Eu a conheci através do Sidney Miller, um compositor maravilhoso, que foi a segunda gravação de uma música minha. A primeira foi Elizeth Cardoso, que gravou uma minha e do Roberto Nascimento, meu parceiro. A segunda foi Nara Leão, uma música só minha, chamada “Amo Tanto”, que vai ser inclusa nesse novo disco agora que ainda vou lançar.


CA: Você sempre esteve ligado desde cedo à artistas e movimentos de contracultura, de contestação dos problemas sociais que enxergava. De onde vem esse espírito “contestador”? Pelo que parece, até hoje ele está aí.

JM: A questão de contestação eu acho que você já nasce com um espírito, sei lá, de quem vai cumprir uma estrada, a vida é sua. Tem muitos obstáculos no caminho com os quais você contesta, vai formando sua personalidade. E eu encontrei no meu caminho várias coisas que tive que contestar.

CA: Desde pequeno era assim?

JM: É, se você vir a capa do meu disco “O Q Faço É Música”, tá meu pai me levantando e eu bebê de 2 meses. Você olha pra aquela carinha de bebê tá lá invocado a pampa.


CA: Entrando já na sua carreira, eu percebi que diferente do seu primeiro álbum, a partir de “Aprender a Nadar” você passa a revisitar artistas do passado, imagino que foram sua referência. Um deles é Valzinho, que foi também cunhado como um “compositor maldito” na época dele. Gravar Valzinho tinha mais a ver com reconhecer os nomes do passado ou se identificar com um artista incompreendido, assim como você, naquele momento?

JM: Interessante, eu não sabia disso. Eu sabia que Valzinho era um compositor que compunha melodias mais diferentes, uma harmonia mais elaborada, mais “jazzística”, digamos assim, e soube isso pelo Hermínio Bello de Carvalho. Ele que me falou pela primeira vez de Valzinho e tal, e eu fui buscar e encontrei. Essa música, “Imagens”, são fotografias, né, imagens, ele fala dele próprio: “a lua é gema de ovo no copo azul lá do céu”, isso é lindo. Ele comenta ele mesmo: “se a imagem é maluca, se eu sou mau compositor, mas tenho a alma em sinuca”...e etc. Muito bonita.

CA: Então tem mais a ver com reconhecer os nomes do passado, né?

JM: Eu sempre estive com os nomes do passado, porque eu fui criado pela Rádio Nacional, Tupi, Mayrink Veiga, ficava sempre o radinho ligado lá em casa, com notícias e música. Então todos aqueles aqueles artistas e músicas da década de 1950, 1960, até 1970, eu ouvi na rádio, minha formação é de rádio.


CA: Bom, então aproveitando que eu falei isso, saiu uma notícia semana passada com você falando que não gosta de rótulos, é só um músico: essa história de “maldito da MPB” já é uma coisa superada, do passado? Como você enxerga isso hoje em dia?

JM: Completamente. Naquela época, ser chamado de [artista] “marginal”, “maldito”, ou “desafinado” - “se você disser que eu desafino amor/saiba que isto em mim provoca imensa dor” - enfim, eu me sentia orgulhoso, porque eu tava ao lado de Rimbaud, Baudelaire e tal, os artistas “malditos”, incompreendidos, marginalizados, o próprio Villa-Lobos. Aí eu fui ver que todo momento que a arte dá um pulo transformador, novas descobertas e isso e aquilo, como a ciência também, as pessoas primeiro tendem a negar. “Isso aí é maldito”, “A gente não entende”, e blá blá blá. Passa-se o tempo, as pessoas vão deixando de não-entender e outras já vindas dessa aventura toda criativa já vem ouvindo e se formam através do trabalho desses artistas ditos marginais ou malditos e tal.

Enfim, acabou essa história, mesmo porque maldito, vai lá no dicionário ver o que que é [risos], chato a pampa.

CA: Eu lembro que ano passado entrevistamos o filho do Sérgio Sampaio e ele comentou que no fundo, essa história de maldito dá uma espécie de carimbo positivo no artista. E ele fala que sentia muito do pai ter falecido antes dessa era da internet, das coisas sendo redescobertas, e não teve a chance de acabar de vez com esse rótulo.

JM: Pois é, “falam de mim mas eu não ligo, todo mundo sabe que eu sempre fui amigo”, eu sempre tive essa música no meu repertório. Mas mesmo assim, eu acho que o Sérgio Sampaio atualmente não fica escondido, é bem ouvido e bem reconhecido como um grande compositor.

Foto de José de Holanda


CA: Eu admiro bastante sua amizade com Moreira da Silva, que rendeu uma história bastante curiosa e se transformou em canção. Sabe dizer qual foi o motivo das vaias no Festival 79 de Música Popular quando vocês defendiam “Tira os Óculos e Recolhe o Homem”? O que aconteceu exatamente?

JM: Eu não imaginava, pô, eu e Moreira, uma dupla cantando samba, um samba-de-breque, o primeiro e único samba que eu fiz com Moreira da Silva, contando a história da minha prisão lá em Vitória. No Projeto Pixinguinha, eu cantei duas músicas fora do roteiro e resolveram me prender - e já tavam atrás há algum tempo, mas tudo bem. Aí isso virou um samba, e alguém propôs de botar lá no Festival da Tupi, e fomos eu e Moreira. Até brincamos, levamos algemas, e um se algemou no outro.

Só que aquela coisa de vaia, era de festival mesmo, o público vaiando tornava-se o público. O Moreira que nunca tinha experimentado - eu não, tava cansado de ser vaiado, e por que não vaiar também quando necessário? - ficou muito puto. Achou que era contra ele, “que absurdo”, e começou a xingar o público. Quanto mais ele xingava o público, “seus imbecis”, “seus idiotas”, mais o público ficava doido. E a gente tava preso pela algema no palco, ele foi fazendo o discurso, puxando pra cima e pra baixo, e lá fui eu acorrentado ao Moreira. Foi muito engraçado, até achar as chaves da algema foi uma dificuldade.

Levamos essa vaia e aí mesmo que nos aproximamos mais ainda. Se Moreira da Silva é vaiado, eu tô sendo aplaudido.


CA: Para matar a dúvida de muitos curiosos: você e Donato realmente ficaram nus para as fotos de “Síntese do Lance” ou foi apenas um teatro? Como surgiu essa ideia?

JM: Esta ideia surgiu da companheira do Donato, que é Ivone Belém. Na hora de fazer as fotografias, lá em Araras, onde a gente tava, no estúdio lá no meio do mato e tal, ela nos desafiou: “ah, vocês que são tão modernos, botam pra quebrar, são de vanguarda, quero ver vocês tirarem foto nu pra essa capa!”...e já foi tirando a roupa do Donato.

Eu que tô acostumado com a minha colônia finlandesa desde os 15 anos de idade, vou à Penedo que tem um sítio da minha mãe lá, entrava em sauna pra lá e pra cá, banhos de rio pelados com os finlandeses e não-finlandeses, não tive problema não. Quando ela falou de tirar a roupa eu já fui tirando. E o Donato falava baixinho olhando pra mim: “constrangedor, constrangedor…”. Aí a gente tirou a fotografia mas faltou tirar também uma outra prova de fotos com o Leo Aversa, o fotógrafo, e fomos pro estúdio, tiramos algumas fotografias, e ele fez um trabalho no photoshop.



CA: Jards, você está completando 80 anos. Com tantas histórias vividas, canções lançadas, turnês e shows feitos, como você enxerga a passagem do tempo?

JM: Olha, eu já fiz uma música, inclusive no "Besta Fera" saiu, que o título é “Tempo e Contratempo”, no qual eu falo: “o tempo não existe, essa é que é a graça”.

CA: Então você não sente o tempo existindo?

JM: Não. O tempo passa. Como disse o João Donato, quando fizeram pra nós exatamente essa pergunta em uma entrevista: “olha, enquanto eu tiver entrando e saindo do cemitério sob minhas próprias pernas, eu tô ótimo”. É uma piada macabra mas faz sentido. Aí me perguntaram, “e você, Macalé?”, e eu digo: “a mesma coisa”.  


CA: Qual a memória musical mais marcante que você possui?

JM: Uma música que minha mãe cantava, que chama-se “Nancy”.

CA: Uma valsa?

JM: Isso, uma valsa. “Ouve esta canção/que eu mesmo fiz pensando em ti/é uma veneração, Nancy…”. Essa aqui.


CA: Amor não é um tema novo na sua poética. Você acha que o mundo está precisando? O que esperar de seu próximo trabalho com “canções de amor”?

JM: São canções que falam de amor, mesmo que não tenham “amor” escrito dentro da canção, mas a situação de amor. Acho que todas as canções são fundamentalmente de amor, mesmo que não falem a palavra. Nesse momento, falar de amor é um gesto político. Estar do lado do amor é uma posição política, é isso que eu quero. Estou pensando nesse disco, uma coisa amorosa, claro, como também um gesto político, falar de amor explicitamente, dentro de um contexto político, vivencial. 


Nosso imenso agradecimento ao Jards e também à Carla Yared, produtora dele, e Rejane Zilles, companheira do artista, por todo carinho e atenção dedicados para que essa entrevista florescesse.

Vida longa ao professor Macalé!


Todas as fotos cedidas por Rejane Zilles. Acervo pessoal.


Caio Andrade é graduado em História da Arte na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ), pós-graduando em Jornalismo Cultural (UERJ) e Assistente de Pesquisa e Comunicação no Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) desde 2020. Grande apaixonado por samba, pesquisa sobre o gênero há mais de uma década, além de tocar em rodas e serestas no Rio de Janeiro.

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