Entrevista

Entrevista Exclusiva: João Sampaio conta as histórias de um boêmio solitário

por Caio Andrade

quinta, 28 de abril de 2022

Compartilhar:

Sérgio Sampaio, herói da contracultura musical brasileira, completaria 75 anos em abril de 2022. Nascido em Cachoeiro de Itapemirim, possuía uma forte tradição musical na família, tanto com o pai, Raul, quanto com o primo, o também Raul Sampaio Cocco, famoso compositor capixaba. Apesar dos poucos álbuns lançados e de uma carreira relativamente curta, hoje se tenta expandir a genialidade do artista para além do sucesso de "Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua".

Em uma entrevista exclusiva ao IMMuB, João Sampaio, filho de Sérgio, conta um pouco as histórias sobre seu pai, um boêmio um tanto quanto solitário, de opinião forte e apaixonado por futebol. Confira abaixo:


IMMuB: Você se lembra como era o Sérgio Sampaio do dia a dia? O que gostava de fazer além da música?

João Sampaio: Bom, eu convivi pouco com meu pai, né? Ele morreu eu tinha 11 anos, então tive pouco contato em vida, mas eu sei que uma das grandes diversões dele era jogar futebol de botão. Ele se dizia muito bom, jogava muito com Xangai, meu padrinho. Gostava muito de jogar futebol também, era um craque (embora não parecesse, era um bom jogador de futebol). Meio desengonçado, mas fazia gol. Me lembro de meu avô contando umas histórias lá do sítio, que ele jogava futebol com os funcionários e era uma das diversões dele.

Meu pai jogava muito bem sinuca também, era um cracasso da sinuca, essas coisas de bar, ele desenvolvia muito bem. Era um cara que tinha outros prazeres na vida, gostava muito de uma mesa de bar, de sentar para conversar com os amigos, enfim, era um boêmio verdadeiro mas que tinha também essa paixão pelo futebol e pelo futebol de botão.


IMMuB: O primeiro disco de seu pai foi com Míriam Batucada, Edy Star e Raul Seixas. Você chegou a conhecer alguns desses artistas?

João Sampaio: A Míriam eu não conheci, morreu eu acho que no mesmo ano que meu pai, um pouco depois, não tive o prazer de conhecer. O Raul, minha mãe conta que teve um aniversário da Vivi, a filha do Raul com a Kika Seixas, uns dois anos mais velha que eu, e minha mãe conta que teve um aniversário dela que a gente foi. Mas enfim, se minha mãe foi, ela ainda era casada com meu pai, ou seja, eu não tinha 3 anos. Não me lembro, mas está nos anais da história que eu conheci o Raul Seixas. E o Edy, eu tive o imenso prazer de conhecer numa das edições do Festival Sérgio Sampaio, que é um evento que rola lá em Vitória, já há 16 anos, um evento bem legal.

Em 2015, se não estou enganado, eu tive o prazer de mediar um bate-papo com o Edy e o Xangai, e é impressionante, o Edy é um artista de verdade, daqueles que você quase não encontra mais hoje em dia, o cara que é 100% do tempo um artista, uma diva. A gente se deu muito bem e foi ótimo poder conhecê-lo. Ele é um cara testemunha ocular de muita coisa. Esse disco "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista" é um marco na música brasileira e poder ouvir as histórias da boca de quem viveu aquilo ali, quem estava junto, é incrível. E o Edy é uma pessoa que fala muito, expansivo, então, corrigia as pessoas falando aquelas imprecisões, o Edy: "não, não, eu estava lá, não foi assim." Enfim, tive o prazer de conhecer uma grande figura. Deixo aqui o meu beijo pra ele.


IMMuB: Como era a relação de seu pai na indústria musical?

João Sampaio: A relação do meu pai com a indústria da música era complicada. Meu pai era uma pessoa de opinião forte, tinha suas convicções. Esse tipo de coisa ou você faz concessões ou o mundo te engole, e meu pai optou por não fazer concessões. Ele era um cara de fazer arte, não era um promotor, não era um vendedor, era um cara que gostava de compor e de cantar, a linguagem dele era essa e ele tinha alguma dificuldade no "relacionamento profissional", por dizer assim. Então, óbvio, foi uma relação conflituosa o tempo todo, ele querendo impor as vontades dele e a indústria naquela época era um rolo compressor. Eu brinco que é mais ou menos como você dormir na cama com um gorila de 600 kg: uma hora ou outra o gorila te esmaga. E, infelizmente, meu pai foi esmagado pela indústria.

Mas eu tenho pra mim que se ele não tivesse feito o que ele fez, não seria o meu pai, não seria Sérgio Sampaio. Eu gosto de pensar que ele tinha a agência da carreira dele, ele que mandava, e se a indústria não quisesse ele do jeito que ele queria, azar da indústria. Óbvio que pagou um preço caro por isso, teve uma vida difícil financeiramente, mas pelo menos ele foi ele, fez o que precisava fazer. Até por uma proteção minha mesmo, psicológica, gosto de pensar por esse lado, que ele que ditou os rumos da carreira dele.


IMMuB: Seu pai era considerado um dos "malditos" da MPB. Você lembra como ele lidava com isso, ou ele não se incomodava com essas rotulações?

João Sampaio: Confesso que uma das tristezas da minha vida foi não ter tido a oportunidade dessas conversas com meu pai. Sempre fui muito curioso, então me ressinto muito de não ter conversado com ele sobre essas questões. Eu acho, pelo que eu me lembro, que ele não lidava bem, não gostava desse rótulo, não. Já tive a oportunidade de conversar com parceiros, amigos dele da época, que também sofreram com essa rotulação - o [Jards] Macalé, o [Luiz] Melodia... -, e todos eles eram muito ressentidos porque sofreram muito na pele esse rótulo.

Eu, falando por mim, tenho a impressão que esses caras todos, depois que o tempo passou, os que não ficaram pelo caminho acabaram se beneficiando um pouco disso, porque nos tempos que a indústria ditava tudo, você ser rotulado como "maldito", de alguma forma, em alguns círculos sociais, isso te beneficia, te dá um selo de "bom artista", por assim dizer. Acho que meu pai não teve essa oportunidade, infelizmente ele veio a falecer antes, mas os que sobreviveram, que conseguiram seguir, tiveram a oportunidade de colher alguns frutos desse rótulo que acompanhou eles a vida inteira.

O que eu sei é que eles não gostavam, sofreram na pele os tempos das vacas magras. Imagina, você é um artista, e três ou quatro empresas te tirarem do circuito. Então acho que tinha, sim, um ressentimento ali com tudo isso, mas, como eu falei: gosto de imaginar que meu pai fez o que tinha que ser feito, o que ele nasceu para fazer e pagou o preço.


IMMuB: Pouco se fala do parentesco de Sérgio Sampaio com o compositor Raul Sampaio, falecido recentemente. A relação deles era distante ou parece ser apenas coincidência esse fato não ser tão comentado?

João Sampaio: Eles de fato não eram muito próximos, mas não eram distantes. Meu pai era uma pessoa difícil de relação pessoal. Não me lembro dele indo visitá-lo ou qualquer coisa do tipo, mas sei por livros e por ouvir histórias que o Raul foi certamente uma das pessoas mais importantes na formação musical do meu pai.

O pai do meu pai, que também chamava Raul Sampaio, era compositor de marchinhas e dobrados, então meu pai já nasceu nesse meio, vendo meu avô compor. Meu avô escrevia partituras, então a primeira grande influência do meu pai, certamente, foi meu avô. Mas na adolescência ele teve a oportunidade de frequentar a casa do primo, Raul Cocco, que tinha uma discoteca incrível de vinis. E foi ali, na casa dele, que meu pai passava as madrugadas ouvindo os discos e criou a paixão que ele tinha por aqueles cantores dos anos 1950, de voz empostada, tipo Nelson Gonçalves. Meu pai era um grande fã. Aí, depois, meu pai foi trabalhar como locutor de rádio e dizia: "você só conhece a música brasileira quando vai trabalhar nas paradas de sucesso". Ali foi a terceira fase da formação musical do meu pai.

Falando do Raul de novo, eles se davam bem sim, não tinham nenhum problema pessoal, mas acho que pela condição de meu pai não ser uma pessoa muito dada a relações, era um cara mais fechado no círculo dele. Mas tinha, sim, grande admiração pelo primo e um agradecimento de ter tido a oportunidade de frequentar a discoteca dele.


IMMuB: Sérgio caiu bastante no gosto das gerações mais jovens apesar de não ter sido devidamente valorizado nos anos passados. Como você encara isso? Como será que ele encararia isso?

João Sampaio: De fato, com a chegada da internet, com acesso às produções musicais mais antigas, meu pai realmente teve um boom de pessoas ouvindo. E acho que aí entra aquele lance do "maldito": o pessoal que curte meu pai geralmente é um pessoal mais ligado à contracultura, uma galera que valoriza um pouco essa história do cara ter batido de frente com a indústria, enfim, e tenho certeza que se meu pai não tivesse morrido em 1994 teria reerguido a carreira dele através da internet. Teria ali o público fiel, porque se tem uma coisa que quem gosta das músicas do meu pai tem é fidelidade, um pessoal altamente viciado, gente que escuta muito, então eu tenho certeza absoluta que meu pai teria se reerguido e seria hoje um dos grandes artistas vivos brasileiros, podendo se comunicar direto com o público, não precisando desse meio de campo da indústria.

Eu fico muito contente, acho sensacional, você acompanhar e ver que mesmo com quase 30 anos de morte do meu pai a coisa continua muito viva. Me sinto um grande privilegiado de poder receber o carinho das pessoas nos lugares mais inusitados, parece que a pessoa é minha amiga de infância. São aqueles abraços sinceros. Fico muito lisonjeado. Infelizmente, meu pai não teve a oportunidade de se reinventar nessa modernidade. Acho que a gente como público, que gosta, perdeu muito, porque acho que ele seria um grande cronista dos momentos que a gente viveu, e tinha muita vontade de saber o que ele pensaria de tudo hoje e como estaria reagindo a tudo.


IMMuB: A capa de "Tem Que Acontecer" (Continental, 1976) mostra duas mãos, provavelmente de seu pai, sob o chão. Saberia nos contar um pouco sobre o processo criativo dele, e mais especificamente, sobre essa capa também?

João Sampaio: Sobre essa capa eu realmente vou ficar devendo a informação, mas o que eu posso te confirmar é que realmente é a mão do Sérgio Sampaio. Quanto ao processo criativo do meu pai, eu sei pouco também, porque convivi pouco, mas tenho lembranças. Acho que a principal característica desse processo era ser solitário. Ele tinha muita dificuldade de fazer parcerias; acho que, inclusive, a única parceria que ele tem é com o Sérgio Natureza, parceria onde os dois compõem juntos. Ele tem outras parcerias: uma delas com Vinicius de Moraes, que ele musicou um poema, e coisas assim. Mas, parceiro, parceiro mesmo, que ele gravou, foi só o Sérgio Natureza. Ele era bastante sozinho.

Eu me lembro de estarmos passando férias e ele acordava tarde. Acordava, ficava um pouco comigo, passava um tempo e ele se trancava no quarto. Ele tinha um gravador de fita, uma estrovenga daquela dos anos 1980, pesava um quilo, e ele ia com o violãozinho dele e o gravadorzinho de fita, as fitinhas cassete, e ficava lá gravando, deixava o negócio correr, compondo. Ele tinha muito isso das coisas saírem.

Tem uma história da música "Quatro Paredes", que ele estava com um amigo, e falou: "cara, pega um papel e uma caneta". Começou a falar, declamou a música, e ela saiu praticamente pronta. Ele tinha muito disso. Acho que o processo criativo dele era muito no dia a dia, interno, e ele tirava uns momentos no dia para poder botar no papel.


Nós da equipe IMMuB agradecemos o carinho do João Sampaio pela entrevista gentilmente cedida.



Fotos: imagens retiradas da internet/Reprodução



Caio Andrade é graduando de História da Arte na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ) e Assistente de Pesquisa e Comunicação no Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) desde 2020Grande apaixonado por samba, pesquisa sobre o gênero há mais de uma década, além de tocar em rodas e serestas no Rio de Janeiro.

Comentários

Divulgue seu lançamento