Entrevista

Entrevista Exclusiva: Roberto Menescal e suas Memórias Musicais

Por Caio Andrade, Cecília Innecco e Vinicius Oliveira

Segunda, 16 de outubro de 2023

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Prestes a completar 86 anos neste mês de outubro, o compositor, arranjador e produtor Roberto Menescal é uma lenda viva da música brasileira, aclamado tanto por seus contemporâneos como por outros nomes de gerações posteriores. A equipe do IMMuB teve o privilégio de entrevistar pessoalmente o artista dada a relação dele com o tema do mês: "Menesca" é um dos únicos artistas presentes na inauguração da gravadora Elenco que ainda podem contar essa história!

Roberto Menescal com seu primeiro LP em ensaio durante a entrevista.

Aproveitamos, também, para mergulhar nas memórias musicais dele, e o que não faltou foram boas histórias, lembranças maravilhosas e, lógico, muita música! Veja como foi:

IMMuB: Menescal, qual foi a primeira música brasileira que você se recorda de ouvir e como essa experiência afetou você?

Roberto Menescal: É, estranhamente, a primeira música que ouvi foi quando estava estudando, ou supostamente estudando, fazendo dever, mas a cabeça em outro lugar, né? Eu estudava ouvindo rádio. Aí, de repente, eu ouvi uma música do Gonzagão, aparentemente não tinha nada a ver comigo, “Boiadeiro”: “vai, boiadeiro que a noite já vem, leva o teu gado e vai pra junto do teu bem”. Aí ele começava a descrever, “são dez cabeças do gado, é muito pouco, é quase nada, mas não tem outro mais bonito no lugar”. Depois, “minha Rosinha, é pequenina, é quase nada, mas não tem outra mais bonita no lugar”, “são dez filhinhos, é muito pouco, é quase nada, mas não tem outra mais bonita no lugar”. Eu saí, tinha uns quatorze anos, pedi a minha mãe um dinheirinho pra comprar um disco na Loja Americana, e fui lá e comprei o disco dele, fiquei apaixonado pela música. A primeira que me marcou de eu ter vontade de comprar um disco, foi “Boiadeiro”, do Luiz Gonzaga.

IMMuB: Conta pra gente, um disco que só faltou furar de tanto que ouviu?

Roberto Menescal: Eu furei vários, inclusive, mas o que foi importante para a gente e para a música brasileira em geral foi um disco americano com um guitarrista chamado Barney Kessel, um baixista e uma cantora chamada Julie London. Todos os discos da época eram com banda de jazz e gravava todo mundo junto porque só tinha um canal de gravação. Hoje tem dois mil, se quiser. Aí a cantora fazia, “this can’t be love”, aquela orquestrona e você ouvia a guitarra, o baixo, o piano e a bateria, era tudo uma coisa só. Você não distinguia o acorde, ficava doido para saber qual é era a harmonia daquela música, mas não distinguia o baixo com a guitarra. Aí quando um amigo meu falou assim, “Menesca, vem aqui que tem um disco que você vai adorar”, me falou de um guitarrista, um baixo, uma guitarra e uma cantora, perguntei se era só isso. Não tinha cordas, não tinha bateria? Quando ele botou aquele primeiro acorde, era uma música chamada “Cry Me a River”. Esse primeiro acorde, eu já não sei o que era. Era um acorde novo pra mim, realmente era novo. E fiquei louco, o disco é todo assim. Então, você ouvia a guitarra, todos os acordes - [pensei] "puxa, vai dar pra gente tirar muita coisa".

Aí reuni Baden Powell, Oscar Castro Neves, Durval Ferreira, que era um bom compositor, tinha um cara de São Paulo, o Luiz Roberto, mais um e eu. Eram seis, violonistas e guitarristas. Marquei com todo mundo no sábado, na casa desse fotógrafo que trouxe o disco, todo mundo ficou louco. Como éramos 6, cada um ia ficar responsável por tirar o que pudesse de 2 faixas, eram 12 no total. E a gente se encontrou um mês depois. Eu tirei o “Cry Me a River”. Nós nos reunimos e sentimos que ali que a música brasileira cresceu uns dez anos com esse disco, porque tudo aquilo a gente talvez fosse aprender em dez anos. Um acorde aqui, o outro aqui, mas se você escutar esse disco hoje, ele é moderno pra burro. Impressionante, impressionante. E ela cantava muito bem também, muito, bonita, sabe? O disco tinha tudo. E daí em diante, nossas músicas cresceram. Ainda não era bossa nova, mas começamos a tocar jazz, com aqueles acordes, com aquelas coisas todas e isso ajudou logo depois no começo da Bossa Nova. Então esse disco, fora de qualquer outro. Há outros importantes, mas esse…

IMMuB: E se lembra de algum disco brasileiro que também ouviu tanto até furar?

Roberto Menescal: O primeiro disco do João Gilberto foi muito importante porque a gente passou um pouco do jazz para a bossa nova, sem o nome ainda, mas com aquela batidinha dele que a gente não sabia fazer exatamente. Eu fazia uma, o Durval fazia outra, o Baden fazia uma mais samba, e nenhuma era igual ao do João Gilberto. Aí um dia marcamos com o João também, queríamos aprender um pouco da batida. Ele falou que "era tão simples". Aí eu fiz a pergunta chave:

- João, da onde vem sua batida?
- Do samba.
- Não, tudo bem, do samba. Mas a minha também vem do samba, a outra vem. Mas de quê?
- Rapaz, o samba tem a agogô, reco-reco, tamborim, pandeiro. Você tem que pegar um negócio, não dá para fazer isso tudo no violão.
- E você pegou o que?
- Eu peguei o tamborim.

Então, todos nós passamos a tocar muito próximo do João. Não tocávamos igual porque a gente achava que tinha que ser um pouquinho diferente e também a gente não conseguia fazer igual, então cada um fez uma batida. Mas está tudo aí dentro. O disco do João Gilberto foi um marco, tanto que eu virei divulgador do disco. Eu ia na loja e pedia uns 10. O cara comprava, eu não aparecia mais, mas o cara vendia os 10 e aí todo mundo foi comprando. Foi muito importante também o disco do João.

Capa do primeiro LP de João Gilberto, "Chega de Saudade" (Odeon, 1959).

IMMuB: Você fez músicas que marcaram uma época. Existe alguma música que você gostaria de ter feito?

Roberto Menescal: São várias músicas que eu gostaria de ter feito. O Carlinhos Lyra tem várias. Eu gosto muito de “Minha Namorada”, “se você quer ser minha namorada...”, que foi o Vinícius que fez a letra. Aliás, o Vinícius fazia tanta letra que se confundiu. Ele mandou para o Carlinhos uma fita com as seis músicas que deu para ele fazer e uma delas é a “Minha Namorada”. Mas ele confundiu e mandou cantando “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela, menina, que vem e que passa…” [com a melodia da música "Minha namorada" que conhecemos]. Mandou ele ver [as fitas] que [ele] estava indo pra casa do Tom, se estava tudo certo. E o Carlinhos disse: “eu pensei que, essa música, você fosse fazer mais romântica. Você fez mais um samba assim, de bossa nova…”. Aí ele viu a confusão e disse "essa letra era para a música do Tom". Sabe, é uma música que eu adoro, muito bem feita, ela toda. Essa foi uma delas. Do Tom, quase tudo eu gostaria de ter feito, coisas maravilhosas. “Samba do Avião” é uma coisa gloriosa, eu gostaria de ter feito. Tem várias músicas americanas, “The Shadow of Your Smile”, e várias outras. Na verdade, se pudesse ter roubado música, teria roubado várias, de vários autores. São muitas.

IMMuB: E consegue indicar 5 discos que as pessoas têm que conhecer?

Roberto Menescal: O disco da Elizeth, “Canção do Amor Demais”, já falei também do João Gilberto, o “Chega de Saudade”. “The Shadow of Your Smile”, americano, mas mudou a música brasileira. “Julie is Her Name”, que tem o “Cry me a River”, posso te garantir que a música brasileira avançou 10 anos. Modéstia à parte vou colocar um disco meu. Não um disco meu, mas um que eu produzi, que é o disco da Elis que eu acho que foi muito importante pra carreira dela principalmente. Não podia uma cantora como Elis, que estourava em shows e na TV, vender 10.000 cópias. É difícil dizer porque ela tem vários discos com o nome de “Elis”, mas é o “Elis” que ela canta "quando olhaste bem nos olhos meus...". Canta “Atrás da Porta”, “Bala com Bala” e “Águas de Março”. Ela queria gravar inéditas de Caetano, Gil, Chico…eu pedi 1 mês pra separar o repertório, e fui ouvindo um tal de João Bosco, Raimundo Fagner. A partir daí ela passou a vender quase 200.000 cópias. 

IMMuB: Qual foi o show ao vivo mais memorável que você já participou ou assistiu no Brasil? Existe algum que você não assistiu e gostaria muito?

Roberto Menescal: Shows memoráveis foram alguns. Pra mim, a primeira grande lembrança foi quando a gente fez [o show] na faculdade de arquitetura, na virada pra Urca, perto do Canecão. Falaram para fazer uma apresentação e eu tive a ideia: como a gente era mau músico ainda, fazer uma espécie de jam session pra garotada, tocar jazz, era o que se fazia. Os músicos profissionais, quando tinham uma folga, iam pra algum lugar se reunir e fazer uma jam session. E eu ia olhar. Aí com essa ideia, eu fiquei pensando: “ah, mas a gente não toca tão bem assim e tal, já tem umas musiquinhas nossas”. E falei: “vamos fazer um samba session!”. Ronaldo adorou, “grande, vamos fazer!”. E o que seria um samba session? Com a música brasileira, improvisar e cantar. Conseguimos trazer o Alf de São Paulo, Sônia Delfino, Alaíde Costa. Tom disse que ia dar uma olhada.

A gente que preparava tudo. Eu tava varrendo o palco, era uma arena, e ficavam me apressando pra eu varrer logo que queriam entrar. Eu mandava esperar um pouquinho. “É que o trânsito já está parado”[alguém disse] e eu respondi “poxa, logo hoje”. E disseram então: “não, o tá parado por causa da multidão que quer entrar”. Eu não acreditei, mas era. Tenho a foto. Você vê aquilo lotado, em volta da gente. Pra gente foi um susto memorável, a Nara cantou de costas de tão envergonhada. Esse show foi muito importante pra gente, foi aí que tivemos noção de que nossa música já estava indo pra garotada. Esse foi um.

O outro foi lá em Nova York, no Carnegie Hall, em 1962. Eu nem sabia o que era Carnegie Hall, Nova York, nada. Um cara do Itamaraty me ligou falando que a gente ia lançar a Bossa Nova nos Estados Unidos, que ia ter um show, me deu a data e o endereço, mas eu falei que não ia poder ir, estava com a data da pescaria marcada já. Já tinha alugado o barco e tudo, não ia poder. Aí o Tom me telefonou: “Menesca, você está maluco? Não é você, nem eu, não, é o Brasil que vai representar nossa música lá fora. Você tem que ir!”. Aí se Tom falou, eu tinha que ir, né? Claro. Desmarquei a pescaria e fui pra lá sem saber o que era. Perguntei pro Tom o que eu ia fazer lá, ele disse que todo mundo ia tocar, que ninguém sabia direito. Eu não sou cantor, nunca tinha cantado na vida. Ele disse que Sergio Mendes ia tocar comigo, pra eu fazer uns dois números instrumentais no grupo dele e eu topei.

Quando a gente chegou nos EUA, bobões, achando que ninguém conhecia a nossa música, “Desafinado” já estava nos primeiros lugares dos hit parade, o Tom mesmo já sabia disso. Os músicos foram receber a gente no aeroporto. Eu, bobo, voltei e falei “nossa, que sorte, deve ter uns músicos de jazz indo pra algum lugar”. Aí me falaram que era pra gente e eu não acreditei. Mandaram eu passar pra ver e veio Gerry Mulligan me abraçando com “hi, Menescal!”. De noite, já tava na casa do pessoal. E o ensaio? Todo mundo queria tocar com Sergio Mendes e ele me disse que não ia dar. Falei pro produtor que não ia poder, porque não sou cantor e ele me disse que eu ia sim, que cantava muito bem e já estava de contrato assinado. Então, estreei cantando no Carnegie Hall, um show memorável. Ninguém estreia na vida cantando no Carnegie Hall, posso te garantir. [Depois] Eu tinha uma pescaria e um casamento marcado. Voltei, mas todo mundo ficou.

IMMuB: Qual é a música que mais o emociona cantar ou tocar? Por que?

Roberto Menescal: Eu sou um pouco versátil nisso, cada hora é uma. Às vezes é a última música que a gente faz, ainda tá no clima. Depois esquece ela um pouco, lembra de outra. Ou então, ouço uma música minha depois de muito tempo e me apaixono por ela novamente. Minha, por exemplo, tem uma que está sempre presente na cabeça que se chama “A Volta”, acho a grande letra do Bôscoli. E modéstia à parte gosto muito da melodia. Era a preferida do Ronaldo também. De outras pessoas, tem o “Minha Namorada”, do Carlinhos e Vinicius, que é um hino.

IMMuB: Por falar em Ronaldo Bôscoli, ele foi seu grande parceiro, certo? Como funcionava essa dupla na hora de compor?

Roberto Menescal: A cabeça do Ronaldo era muito criativa. Ele foi um cara essencial pra bossa nova. Só na casa da Nara, ele fez pelo menos umas 100 letras, comigo, Lyra e outros. Era impressionante, uma por dia. O Tom mesmo falava assim: “o Bôscoli é terrível”, gostava muito das letras dele. Ele precisava de uma chave, “tuf”, ia lá e fazia. Era um craque, vocês não conhecem 10% do que ele fez. Uma vez eu não tinha música nenhuma, fiquei enrolando, falei pra ele que estava me lembrando vagamente, e ele: “só me lembro muito vagamente, correndo você vinha quando de repente…”.

Outra vez, a gente ficou contemplando a praia, vendo o sol indo embora, e ele disse: “Beto, nossa praia que não tem mais fim acabou.”. Ele pedia a história por trás - e tinha normalmente. Muita música, eu fazia baseado em imagens que eu pensava, “lá se vai mais um dia assim…”. Foi meu grande parceiro, eu fiz com Ronaldo umas 200 músicas. E tinha uma coisa: ele sempre botou letra na minha música, nunca botei música na letra dele. Até me ofereci, mas ele falava: “Roberto, você tem 7 notas, eu tenho 26 letrinhas, deixa que eu ponho as letras.

Da esquerda para a direita: Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e Carlos Lyra.

IMMuB: Se você pudesse viajar no tempo por meio da música, para qual período da cena musical brasileira você iria e por quê?

Roberto Menescal: Eu iria para a próxima, não para trás. Eu acho que a gente fez muita coisa bacana, acho que teve uma vida muito legal. A gente sente que mudou uma juventude, a juventude que ia aos festivais de terno e gravata, imagina. A gente tirou a gravata da música, posso te garantir. Mas já fizemos. Eu estou seco para ver o que vem aí, o que está vindo, na verdade. Eu sinto que está chegando a coisa. Eu adorei tudo que a gente passou, você viu comentando aqui né, mas passou, eu acho que eu não quero viver de passado. A gente mexe que “quem vive de passado é o samba-canção” [risos]. Eu tenho saudade do futuro.

IMMuB: O IMMuB se dedica a preservar a memória musical brasileira. Na sua opinião, qual a importância da preservação da nossa memória musical?

Roberto Menescal: Eu acho que a preservação da arte, de um modo geral, é muito importante. Gosto muito de pintura, como fez, por que fez. Os movimentos musicais mostram que precisamos de uma mudança, que não pode ficar sempre assim. Eu cito o Marcos Valle, que de repente lança umas coisas diferentes, porque sente a necessidade de outras coisas. A preservação é boa pra entender como era, por que mudou. Preservando você vai entender.

Você vê que hoje, a gente vai a outros países e nós estamos lá, mais que no Brasil. Japão, Estados Unidos…se toca muito mais Bossa Nova que no Brasil. A música é um remédio pra alma mesmo.

É verdade, Menesca!

Agradecemos imensamente ao artista por todo carinho e disponibilidade para que esta entrevista fosse possível. Um gigante da música que tivemos o privilégio de conhecer e admirar ainda mais. Viva o legado de Roberto Menescal.

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