Colunista Convidado

“Escola de samba Portela 1959" – a descoberta de um tesouro do tempo da delicadeza

terça, 20 de setembro de 2022

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O jornalista paulista radicado no Rio, Irineu Garcia (1920-1984), tinha trabalhado numa companhia farmacêutica, antes de aventurar-se no universo do disco. Criou o selo independente Festa, ao lado do livreiro Carlos Ribeiro (da mítica Livraria São José) de início, dedicado a editar poetas declamando suas obras. O primeiro lançamento foi em 1955: numa das faces, o LP de 10 polegadas trazia Manuel Bandeira e na outra, Carlos Drummond de Andrade. Seguiram-se vários autores do ciclo modernista – Menotti del Pichia, Cassiano Ricardo, Cecília Meirelles, Guilherme de Almeida - como compila Ana Paula Orlandi, em sua tese de doutorado, “Literatura e música: a trajetória da gravadora Festa (1955-1971)”. O pequeno selo, que funcionava numa sala no centro do Rio, entrou para a história da bossa nova pelo lançamento, em 1958, do disco que é considerado um de seus marcos inaugurais, “Canção do amor demais”, com composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, na voz de Elizeth Cardoso e a participação (não creditada) do violão de João Gilberto, em duas faixas.

Não era a estreia de Jobim no Festa. Um ano antes, ele participou do disco de maior vendagem (4 mil cópias) do selo, “O Pequeno Príncipe”, adaptado do livro best seller de Antoine Saint-Exupèry, narrado por Paulo Autran e outros atores de sua companhia, musicado por Jobim. Suas composições, numa entonação mais camerística, também com letras de Vinicius, ainda abasteceriam uma vertente erudita do selo, no LP “Por toda a minha vida”, com a cantora lírica Lenita Bruno, mais 30 músicos, incluindo Radamés Gnattali ao piano, e a regência do marido da solista, Léo Perachi. Este disco foi lançado no mesmo ano em que o Festa faria um registro precioso, “Escola de samba Portela 1959”, a partir de então, envolvido em denso mistério. Garcia era amigo de Lúcio Rangel, da Revista da Música Popular Brasileira, um militante do samba autêntico, que certamente convenceu o produtor a levar o grupo da azul e branco ao estúdio. Mas o disco não chegou a ser lançado.

Fita Portela 1959

Não fosse a tenaz persistência do pesquisador Paulo Mathias, empenhado numa biografia sobre o seminal Paulo da Portela, este álbum teria permanecido num estranho limbo, com suas dozes faixas alistadas apenas no super equipado site do IMMUB.

Integrante do coletivo Instituto Cultural Glória ao Samba, entidade sem fins lucrativos, de São Paulo, formada por 22 abnegados estudiosos e cultores do rimo primal (aí incluídos, de pintor de parede e professor a metalúrgico, publicitário e mestre de obras), Mathias e outro integrante do grupo, Rafael Lo Ré, localizaram a herdeira de Irineu. Sua sobrinha, Gracita Garcia Bueno, mostrou a eles a fita com as joias perdidas. Detalhe: eram apenas sete faixas, e os pesquisadores descobriram que as demais tinham sido compostas apenas nos anos 60, e poderiam ter sido agrupadas ao repertório original para completar o trabalho inacabado.

Sem patrocínio oficial, o disco saiu pelo empenho (e o financiamento) dos associados, que vão lança-lo no Rio no próximo dia 24, no apropriado Cordão do Bola Preta.

Impressiona a qualidade do som obtida a partir da gravação original, de 28 de novembro de 1959, e a edição gráfica esmerada, por Mathias, responsável pela direção geral e Fernando Paiva. Nos matizes azul e branco da escola a ilustração de Lucas H. Viotto e design de Pedro Pinhel, além de uma foto interna da bateria da Portela, traz desenhos de ases da escola da época. Como o lendário Manuel Bam Bam Bam, Betinho (Adalberto dos Santos, comandante da bateria), Nozinho, Nilton Batatinha, Dagmar (rara mulher que tocava surdo) e alguns dos autores dos sambas da seleção, Manacéa, Walter Rosa, Chatim e Jair do Cavaquinho, que participou do célebre show “Rosa de Ouro”, em 1965, ao lado de Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Elton Medeiros, Anescar do Salgueiro, Clementina de Jesus e Aracy Cortes. 

A Portela tinha sido bicampeã de 1958, um supercampeonato com 18 escolas, ainda quando o desfile se desenrolava na Avenida Rio Branco, muito antes do Sambódromo. Comboiava 900 componentes, menos de um terço dos desfiles mais recentes, e uma bateria de 156 integrantes. Insuflado pelo apito inicial, abre o cortejo do disco o samba enredo “Vultos e efemérides nacionais”, de Jorge Portela e Waldomiro (“José Bonifácio/mentor da inteligência/ influenciou a D. Pedro I/ para o grito da independência”), acantonado por cuícas (Duda, Alcides). De Chatim (Thompson José Ramos, 1915-1991), um dos três tamborins que os pesquisadores conseguiram identificar, ao lado de Jorge e João, é a exaltação seguinte, “Bahia”: “Terra do Senhor do Bonfim/ das baianas faceiras/ és tudo para mim”. 


Sempre sob o comando do apito, os sambas são cantados pela voz encorpada e melodiosa de Avelino de Andrade, seguido do ataque percussivo e a rebatida do coro feminino formado por Marlene, Iramar, Mosinha e Conceição.  Uma solista feminina não identificada puxa o partido de embalo “A hora é essa” (“vamos cair na folia/ papai, mamãe não quer ir/ mas eu vou levar titia”), também de autor desconhecido. De Walter Rosa (1925-2002), parceiro de Monarco no megaclássico “Tudo menos amor”, é o cadenciado “Crepúsculo”, que inicia de forma apoteótica, com a palavra “indumentariamente”, pela qual o samba ficou conhecido. E segue descrevendo o desfile que deveria ter sido na madrugada e, por atrasos na organização, avançou para as 8:30 da manhã: “os raios de sol que surgiam lá do alto, abrasando a terra/ aumentando a ansiedade no asfalto/ subitamente era travado um grande duelo sensacional/ a Portela derrubava como queria/ a monarquia Imperial”

Expoente da posterior Velha Guarda da Portela, ao lado dos irmãos também exímios compositores Mijinha e Aniceto, Manacéa (José de Andrade, 1921-1995) é autor do maior clássico do disco, “Manhãs brasileiras” (“os passarinhos começam a cantar/ anunciando a manhã brasileira/ gorjeando sobre a mais alta palmeira”). Com o título no singular, essa epopeia de lirismo foi regravada de Zeca Pagodinho a Zezé Motta, Marquinhos de Oswaldo Cruz e também no disco coletivo “O samba é minha nobreza” com participações de Cristina Buarque, Mariana Bernardes, Pedro Miranda, Paulão, Pedro Paulo Malta e Teresa Cristina.

Um estilista do instrumento, que lhe valeu o sobrenome artístico, Jair do Cavaquinho (Jair de Araujo Costa, 1922-2006) contribui com dois sambas de estirpe. Compassada por um breque, a diatribe “Mulher ingrata” não alivia: “não lastime da sorte/ olha o destino como é/ já lhe disse que a vida/ não é como a gente quer”. Já a outra composição na mesma tecla fatalista (com Beatriz Lima da Silva), transcorre num lamento, escudado na marcação: “o incrível destino/ que nos separou, ex-amor/ deixou grande recordação/ lamento o momento tristonho/ que transformou o nosso lindo sonho”.

A privilegiada audição de “Escola de samba Portela – 1959” é como a descoberta de um tesouro dos tempos da artesania e delicadeza. 


Imagens: As ilustrações são de Lucas Viotto e o design gráfico ficou a cargo de Pedro Pinhel

 




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