A música de

'Eu Sou o Samba': A trajetória e o legado de Zé Keti

por Bruna Aparecida Gomes Coelho

sexta, 17 de setembro de 2021

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José Flores de Jesus, conhecido como Zé Kéti, nasceu no dia 16 de setembro de 1921, na cidade do Rio de janeiro. Neto de José Dionísio Santana (flautista e pianista), ainda menino foi morar com seu avô, que costumava promover reuniões musicais em sua casa, as quais tinham a participação de importantes nomes da música popular, como Pixinguinha e Cândido (Índio) das Neves. Foi durante a infância que ganhou o apelido de Zé Quieto (ou Zé Quietinho), que foi encurtado para Zé Kéti, tornando-se o seu nome artístico.

Após o falecimento de seu avô, Zé Kéti mudou-se para o bairro Bento Ribeiro, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. No final da década de 1930 começou a frequentar a Escola de Samba Portela por intermédio do compositor Armando Santos. Logo, ele se tornou membro da ala dos compositores da Portela. Apesar de ter se afastado por alguns anos das atividades da Portela, e de ter feito parte da União de Vaz Lobo, Zé Kéti se assumiu portelense de coração e retornou à sua antiga escola no início dos anos de 1960.

Antes de seu retorno à Portela, Zé Kéti teve suas primeiras composições gravadas. A música “Tio Sam no Samba”, parceria com Felisberto Martins, foi lançada em 1946 pelo grupo Vocalistas Tropicais. Contudo, seu primeiro grande sucesso veio apenas em 1951, quando Linda Batista gravou o samba “Amor Passageiro” (Zé Kéti e Jorge Abdala). A carreira de Zé Kéti deslanchou em 1955 quando um de seus maiores sucessos, “A voz do Morro”, que havia sido gravado por Jorge Goulart com arranjo de Radamés Gnattali, fez enorme sucesso na trilha sonora do filme “Rio 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos. Este filme é apontado como a obra que inspirou o Cinema Novo, que foi um movimento estético e cultural que pretendia mostrar a realidade brasileira. Em “Rio 40 graus” o sambista trabalhou também como segundo assistente de câmera e ator. Em 1957, novamente, Nelson Pereira dos Santos incluiu dois sambas de Zé Kéti na trilha sonora de seu filme “Rio Zona Norte”: “Malvadeza Durão” e “Foi Ela”. Posteriormente, outras composições do sambista figuraram em trilhas sonoras de importantes obras cinematográficas com diretores renomados, como Cacá Diegues que, por sua vez, é indicado como um dos fundadores do Cinema Novo.

Em 1963, Zé Kéti fundou o grupo “A Voz do Morro” ao lado de Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho, Élton Medeiros, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro, José da Cruz e Oscar Bigode. A formação do grupo foi uma oportunidade desses importantes sambistas gravarem suas próprias composições sem a necessidade de intermediários. O primeiro LP do conjunto foi lançado no ano seguinte e recebeu o título de “Roda de Samba”. Apresentavam-se muito no Zicartola, o restaurante de Cartola e sua esposa, Dona Zica, que se tornou um ponto de encontro entre diversos artistas, intelectuais, sambistas e a classe média carioca que morava na Zona Sul. Foi neste restaurante que Zé Kéti conheceu Carlos Lyra, com quem compôs o “Samba da Legalidade”.



Importantes sambistas foram descobertos ou redescobertos em meados da década de 1960. É o caso de Zé Kéti! Nara Leão é considerada, por alguns autores, como a responsável por uma redescoberta dos artistas que cantavam o morro, isso porque a intérprete começou a gravar esses compositores em seus primeiros discos (SARAIVA, 2018: 99). Nara conheceu Zé Kéti no Zicartola e gravou a canção “Diz Que Eu Fui Por Aí” do sambista em seu primeiro disco solo. Segundo o historiador Daniel Saraiva:

Sambistas gravados por Nara foram Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho, dentre outros. Entre os nomes citados, o mais gravado pela cantora foi Zé Kéti, nascido em 1921 no bairro de Inhaúma, no Rio de Janeiro. Ele estava praticamente esquecido nos anos 1960 e as gravações de Nara chamaram a atenção para a obra do compositor que participaria, depois, junto com a intérprete e com João do Vale, do espetáculo Opinião, e seria gravado por outros cantores. (SARAIVA, 2018: 99)

A canção “Opinião” – lançada no disco “Opinião de Nara” – se tornou um marco na carreira de Zé Kéti, pois inspirou o título de um jornal, de um teatro, do grupo que encenou a peça Opinião e do segundo LP de Nara. Este samba, segundo Franklin Martins (2015), não era uma confrontação direta ao regime militar, mas, na realidade, fazia referência à resistência dos moradores de alguns morros cariocas à política de remoção instaurada por Carlos Lacerda. Contudo, seu “poderoso refrão inicial soava como um chamamento à resistência: ‘Podem me prender / Podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião’” (MARTINS, 2015: 53).

Outra música marcante do sambista, também lançada por Nara em seu disco “Opinião de Nara”, é o samba “Acender as velas”. Ficou conhecida por ter se tornado uma música de protesto durante a ditadura. Ao desmistificar a beleza do morro tão mencionada em outras canções, “Acender as velas” trouxe uma letra de impacto por se tratar de um relato da rotina em uma favela. Na voz de Elis Regina esse samba também obteve muito sucesso e atingiu enorme público.



O grupo “A Voz do Morro” lançou seu último disco em 1967 e foi com seus amigos do conjunto que Zé Kéti lutou a favor dos direitos autorais. A história da marcha “Máscara Negra”, grande sucesso carnavalesco, escrita em parceria com Pereira Matos, esteve no foco do debate sobre os direitos autorais. Essa marcha – que foi gravada por ele mesmo e por Dalva de Oliveira – ganhou o 1º Concurso de Músicas para o Carnaval, criado em 1967 pelo Conselho Superior de MPB do Museu da Imagem e do Som. A revista O Cruzeiro (1967) descreveu o sucesso com o público:

As marchas e sambas que puxaram o carro da alegria de 67 eram entoados com mais fervor, agora que eles já tinham sido aprendidos nos bailes da temporada momesca. Cada vez que a orquestra mudava de número, o delírio redobrava. Era como se cada canção executada fosse maior sucesso que a anterior. Um crescendo contínuo, uma ascensão com limites no infinito. Zé Kéti compareceu ao baile para receber uma consagração-monstro. Quando, às duas da manhã, assomou ao microfone instalado junto à orquestra, uma salva ensurdecedora de palmas marcou o ritmo de “Máscara Negra”, cantada pela totalidade dos oito mil de foliões. (Revista O Cruzeiro, 1967)


Zé Kéti conseguiu ganhar o concurso e é inegável que os brasileiros reconhecem a marcha logo em seus primeiros versos: “Tanto riso / Oh, quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão / Arlequim está chorando / Pelo amor da Colombina / No meio da multidão!”. Em outra edição da mesma revista, afirma-se que “o mais novo golpe que está surgindo no Brasil é o golpe do direito autoral”, usando como referência o caso de “Máscara Negra”, quando um “compositor consagrado como Zé Kéti teve de provar que era parceiro de uma música que o Brasil inteiro sabia que era dele” (Revista O Cruzeiro, 1967).

Em 1973, Zé Kéti novamente se retirou da ala de compositores da Portela por não concordar com a classificação de seu samba em um concurso interno da escola. Continuou sua carreira de compositor, mudando para São Paulo em 1976, mesmo ano em que recebeu da Riotur o Prêmio de Melhor Compositor Carnavalesco pelo samba “Amor e Fantasia”. Nos anos de 1970 lançou três LPs, tendo destaque o disco “Identificação” (1979) que continha composições inéditas como, por exemplo, “Tamborim”, escrita junto com Mourão Filho. Em 1982 lançou um novo disco rememorando grandes sucessos, como “Acender as velas” e “Drama universal”.

Voltou a residir no Rio de Janeiro em 1994. Dois anos depois lançou o CD “75 Anos de Samba” com participação de importantes sambistas: Monarco, Zeca Pagodinho, Wilson Moreira e Cristina Buarque. Neste mesmo ano, durante as comemorações dos 30 anos do Teatro Opinião, o bamba recebeu a medalha Pedro Ernesto por toda sua contribuição na história do teatro. Já em 1997, Zé Kéti recebeu um troféu da Portela em reconhecimento por todo o seu trabalho e dedicação à escola de samba. No ano seguinte, ganhou o Prêmio Shell pelo conjunto de sua obra: mais de 200 composições.

Zé Kéti faleceu em 1999, deixando um legado na história do samba. Recentemente, em 2019, Onésio Meirelles, genro do sambista, lançou o livro “Zé Kéti e Suas Andanças Por Aí” no intuito de não permitir que a obra e memória do artista sejam esquecidas. Segundo Onésio, “Zé não era apenas cantor e compositor, mas um artista que também se engajou politicamente nas discussões sobre a luta de classes. Da MPB, foi inegavelmente um dos maiores contribuintes”. Fato é que a memória sobre a vida e a obra do artista devem ser preservadas e a biografia é um mecanismo de perpetuar a sua herança musical.

Neste ano de 2021 muitos eventos estão sendo realizados para homenagear Zé Kéti, que completaria 100 anos se estivesse vivo. Contudo, sua obra permanece viva! O bamba que cantou sobre a vida do carioca, especialmente acerca dos esquecidos nos morros e favelas, que resistem às políticas de extermínio de governos e que sobrevivem no caos diário do nosso país. Os sambas de Zé Kéti são atuais, porque narram a vida dessas pessoas através de um artista que assumiu o compromisso de lutar pelos direitos desses grupos sociais que habitam as periferias cariocas. Em suas músicas ele se tornou a voz de milhares. Os primeiros versos do samba “A voz do morro” resume bem a trajetória desse artista: “Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho valor / Eu sou o rei dos terreiros”. Viva Zé Kéti e viva o nosso samba!



Bruna Aparecida Gomes Coelho é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisas sobre o mundo do samba na ditadura militar.


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