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'Facilita', ou uma prática de liberdade em forma de xote

quarta, 09 de junho de 2021

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"Facilita", de Luiz Ramalho, é um típico xote voltado pros bailes de forró: uma harmonia simples, com não mais que cinco acordes, uma letra despretensiosa em tom de crônica sertaneja e um coro de fácil resposta para que todos cantem. Enfim, um xote swingado feito sob medida para se dançar em par.

É uma dessas canções para as quais dançarinos costumam prestar mais atenção que músicos ou pesquisadores, por fazer parte de um repertório mais corporal que racional, orientado para a dança, com o qual os acadêmicos possuem mais dificuldade em lidar, mas que é igualmente capaz de causar provocações e produzir sentidos inusitados.

O compositor Luiz Ramalho (Foto: Reprodução) 

Se a canção é facilmente situável dentro de um repertório, a letra de "Facilita" é certamente intrigante. O seu tema não difere de parte majoritária do repertório de xotes: ela conta um causo sobre as relações de gênero, sobre masculinidade e feminilidade - mas não reside aí a sua riqueza, afinal, danças que se dançam em casal, como o forró, implicam sempre em formas inventivas de lidar com a questões de gênero. É justamente pela criatividade implicada na letra de "Facilita" que ela se destaca. A letra transcrita, conforme a primeira gravação de Luiz Gonzaga, é a seguinte:

Comadre Joana sempre reclamou
Da minissaia que a filha tem
O namorado se invocou também
E certo dia pra ela falou:
Tua saia, Bastiana, termina muito cedo
Tua blusa, Bastiana, começa muito tarde


Mas ela respondeu: oi, facilita
Pra dançar o xenhenhém, oi, facilita
Pra peneirar o xerém, oi, facilita
Pra dançar na gafieira, oi, facilita
Pra mandar pra lavadeira, oi, facilita
Pra correr na capoeira, oi, facilita
Pra subir no caminhão, oi, facilita
Pra passar no ribeirão, oi, facilita 


Comadre Joana sempre reclamou
Da minissaia que a filha tem
O namorado se invocou também
E certo dia pra ela falou:
Tua saia, Bastiana, termina muito cedo
Tua blusa, Bastiana, começa muito tarde


Mas ela respondeu: oi, facilita
Pra dançar o xenhenhém, oi, facilita
Pra peneirar o xerém, oi, facilita
Pra dançar na gafieira, oi, facilita
Pra mandar pra lavadeira, oi, facilita
Pra correr na capoeira, oi, facilita
Pra subir no caminhão, oi, facilita
Pra passar no ribeirão, oi, facilita 
Pra ta-ri-ta-ti-ta-tá, oi, facilita
Pra brincar na cachoeira, oi, facilita
Pra dançar na gafieira, oi, facilita
Pra correr na capoeira, oi, facilita
Pra mandar pra lavadeira, oi, facilita...

A primeira parte da música é a apresentação de um problema, questão que intriga a mãe e o namorado da Bastiana, personagem central do enredo: a minissaia que ela veste, curta demais. É uma consonância de vozes familiares em tom repreensivo, nada de novo quando se trata da ânsia coletiva em palpitar como as mulheres devem se vestir.

O momento-chave, esse sim interessante, é a passagem para a segunda parte da música: a resposta de Bastiana. Ela faz uma defesa da sua minissaia e sua liberdade de se vestir como preferir, listando argumentos que destacam a praticidade da reivindicação, desde dançar até subir no caminhão. A lista é interminável, como sugere o próprio fim da interpretação de Gonzaga, que encerra a gravação em um fade out enquanto amplia a lista, sugerindo certa infinitude para a mesma. O argumento de Bastiana é inequívoco, e ganha ainda mais força pela forma como é colocado.

Isto porque sua fala é menos um protesto revolucionário em prol de uma liberdade futura do que uma prática de liberdade, uma alegria instantânea e inesperada. Assim, o tom repressivo da mãe e do namorado se dissolvem imediatamente, em especial pelo humor delicado dessa parte da canção. 

Afinal, como toda fala em tom de censura, o  que esse discurso familiar pretende é sufocar uma manifestação de vida, enquanto a resposta de Bastiana cria uma espaço para que a vida respire e transborde. Não por coincidência, o início dessa parte é sempre o momento em que músicos e público sorriem, respondendo o coro: “Facilita!”, como que endossando a argumentação da moça, e o momento solar da letra se reforça na harmonia, caracterizando o momento de retorno à tônica da tonalidade.

A composição do paraibano Luiz Ramalho possui múltiplas variações, desde o primeiro sucesso de Luiz Gonzaga, de 1973, passando por Elba Ramalho, Genival Lacerda e a imprevisível interpretação de Jorge Aragão. Entre todas elas, estou convicto de que a sua versão definitiva é a cantada por Mariana Aydar, Chico César e Mestrinho, gravada ao vivo na casa de shows Canto da Ema. 

Não por ser impecável, mas por ser capaz de captar os traços fundamentais da canção: antes de tudo, por estar sendo executada na formação típica dos trios pé-de-serra. Se a roda é o lugar por excelência em que o samba e o choro se desenvolvem, o trio pé-de-serra (zabumba, triângulo, sanfona e voz), em especial a sua formação improvisada, o “arrumadinho”, é a forma mais natural dos forrós e é o pot-pourri o seu desenrolar mais fluido, afinal, não se deve parar a cada música sob pena de atrapalhar os pares dançantes.


O caráter brincante de "Facilita", além disso, só se exprime plenamente ao vivo, formato em que o vídeo e a interação entre os envolvidos se faz mais presente do que nunca e é abertamente determinante na sua beleza. Há, ainda, o evidente fato da própria dinâmica da música requerer uma voz masculina, em tom de censura, e a voz feminina, que dribla alegremente a repressão. Por último, é uma versão que traz, em si, as cômicas falas de Chico César e mesmo erros de execução que, juntos, reafirmam o caráter despretensioso da canção, que é, antes de tudo, um xote para se dançar.

"Facilita" é uma lição de como lidar com as vozes autoritárias, se inserindo em uma tradição de pensamento voltada para se pensar práticas para uma vida libertária, em que se inserem grandes pensadores, como o terapeuta anarquista Roberto Freire, e, assim, pode ser facilmente pensada como um delicado manual para se lidar com os microfascismos cotidianos. Além de um xote dançante, afinal, "Facilita" é um libelo antiautoritário.

Heitor Zaghetto 

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