Um papo com o Cazes

Faltam narrativas de fracasso no Facebook

por Henrique Cazes

segunda, 11 de dezembro de 2017

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Tendo começado a trabalhar profissionalmente como músico ainda menor de idade, tive desde os primeiros anos de trabalho, um grande contato com músicos de gerações anteriores e percebi que, independente do quanto tinha conseguido conquistar em termos materiais, de respeito dos colegas ou de prestígio artístico, havia uma necessidade nesses músicos de relatar seus fracassos, fosse numa sala de espera de estúdio, num camarim ou no encontro recreativo do bar. Só mais recentemente, lendo o capítulo "Fracasso" de "A corrosão do caráter" de Richard Sennett, entendi melhor o porquê dessas narrativas:

"Aceitar o fracasso, dar-lhe uma forma e lugar na história de nossa vida, pode ser uma obsessão interior nossa, mas raras vezes a discutimos com os outros. (...) Como acontece com qualquer coisa da qual tememos falar abertamente, a obsessão interior e a vergonha só por isso se tornam maiores". 

Ao escrever o livro "Suíte Gargalhadas - cento e tantas histórias engraçadas sobre música e músicos" (José Olympio, 2002), reproduzi algumas narrativas de fracasso, colhidas ao acaso e selecionadas pelo seu potencial humorístico. Ao narrar esses acontecimentos para um grupo de colegas, o músico ao mesmo tempo expia suas culpas e cria laços de solidariedade, reforçando a sensação de pertencimento. Uma mesma história contada pelo mesmo músico ao longo dos anos costumava ser modificada, de modo a acentuar os aspectos patéticos ou vexatórios. A lembrança de fracassos vividos coletivamente também unia e confortava. Quando encontro meu compadre Oscar Bolão, essa terapia de narrar fracassos é exercitada ao extremo. Outro dia lembrei a ele um telefonema dado há uns vinte anos, num momento em que estávamos bem desanimados com o panorama profissional.

_ E ai Bolãozinho, como estão as coisas?
_ Tá brabo meu compadre, tô botando o dobro de água na sopa Knorr…

Caímos na risada e nos sentimos imediatamente renovados. 

Por tudo isso, me chama a atenção a quase total ausência desse tipo de narrativa no Facebook e essa rede social reflete no caso a postura das gerações mais novas, que estão sempre vencendo, pelo menos em suas narrativas. Ninguém dá vexame, ninguém se ferra e até calote pega mal contar no FB. O cara dá notícia de viagens, shows, prêmios, trabalhos em estúdio. Posta fotos junto a grandes astros nacionais e internacionais e depois vem pedir dinheiro para essas vaquinhas virtuais, que chamam hediondamente de "crowdfunding". Deve ser sofrido isso. 

É preciso entender a importância da narrativa dos fracassos como um gesto de finalidades terapêuticas para o narrador e seus ouvintes. Pelo menos era assim que funcionava no ambiente da música popular das últimas décadas do século XX. Havia uma real disposição de aprender e ensinar com o fracasso, como um componente obrigatório numa carreira e um elemento estruturador do caráter. Encaremos, pois, nossos fracassos, de preferência com bom humor. 


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