Fátima Guedes conversa com o IMMuB sobre suas Memórias Musicais
Por Cecília Innecco, Vinicius Oliveira e Ana Carolina Alvarenga
A cantora e compositoras relembra sua relação com a música desde a infância
Fátima Guedes é uma figura icônica na música brasileira, destacando-se como cantora e compositora de uma carreira prolífica e marcada por contribuições significativas ao cenário musical. Sua jornada artística teve início aos quinze anos, quando começou a compor, e desde então, seu talento excepcional conquistou reconhecimento e admiração de diversos artistas renomados como Elis Regina, Maria Bethânia, Simone e Ney Matogrosso, solidificando sua posição como uma das compositoras mais importantes do país.
Agora, em uma entrevista exclusiva conduzida pelo Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB), Fátima Guedes abre as portas de suas memórias musicais, revelando algumas curiosidades e pensamentos sobre sua trajetória.
Vem conosco conferir como foi esse encontro extremamente especial:
IMMuB: Sobre suas primeiras lembranças musicais, qual é a primeira canção que vem à sua mente quando pensa na sua infância e como você acha que ela influenciou a sua relação com a música e até com a composição?
Fátima Guedes: Eu me lembro do meu avô, que era lá de Alagoas, colocando bem alto na vitrola, porque naquela época a gente tinha vitrola, Luiz Gonzaga cantando “Mangaratiba", e aí realmente era uma alegria na casa ouvir o Luiz Gonzaga, o Gonzagão. E o meu avô todo feliz com aquelas referências do Nordeste, enfim, uma alegria mesmo. A minha mãe já gostava mais da Dolores Duran, do Tito Madi, aquela estética mais da pré-Bossa Nova dos anos 50, então a minha infância foi mais ou menos entre esses dois estilos, vamos dizer assim.
IMMuB: Que música ou compositor te fez ter vontade de compor? Por quê?
Fátima Guedes: Eu acho que quando eu comecei a me debruçar a sério no trabalho de compor, isso aconteceu quando eu tinha 15 anos, eu acho que eu estava com a minha maior referência no trabalho da Dolores Duran, Maysa, Tito Madi, todo esse repertório dessa noite carioca dos anos 50. Eu acho que comecei a compor com essa intenção de falar de amor, de me debruçar no discurso amoroso mesmo e com essa estética.
IMMuB: Duas referências femininas, né? Você acredita que ter mulheres como referência tenha sido importante nesse momento?
Fátima Guedes: Pois é. Eu acho que eu sempre me encantei com o discurso das mulheres, porque as mulheres são mais sensíveis na tradução dessa nossa convivência. As mulheres são especiais, né? Elas amadurecem talvez mais fortemente por causa de todas as mudanças que acontecem no nosso corpo, né? No decorrer da nossa vida, né? Aos 11 anos, aos 15 anos, depois vamos ter nossa primeira experiência, depois uma maternidade, depois uma... Enfim, a nossa vida corporal também, além de espiritual. Muito dinâmica, né? Então, eu acho que eu componho, eu escrevo “que nem uma mulher” [risos].
IMMuB: Falando em referências, conta uma referência para as suas composições que ninguém imagina?
Fátima Guedes: Que ninguém imagina? Mozart. Mozart, pra mim, é o mais completo compositor erudito. Ele é genial, ele é criativo, ele traz melodias demais. Mas a música erudita é muito bonita. Mas Mozart é o meu favorito.
IMMuB: Você começou a compor muito jovem. Das canções conhecidas que compôs, qual é a mais antiga?
Fátima Guedes: "Passional". Eu compus essa música quando tinha meus 17, 16 anos mais ou menos e foi a primeira vez que eu vi uma canção minha tomar um formato mais maduro mesmo, sabe? Tipo, tem um A, tem um B, tem um refrão no formato clássico, né? Na letra, uma aposta um pouco mais ousada, né? E foi aí que eu pensei, poxa, será que eu consigo viver disso? Será que eu consigo trabalhar nisso, ser uma compositora? Porque na verdade eu adoro cantar, adoro a técnica, adoro o desafio, mas eu queria trabalhar no backstage. Por muito tempo, eu quis ficar só como compositora, fazendo músicas, servindo aos outros colegas, aos outros artistas que tinham seus discos, cantavam e tal. Eu não pensava em ser uma cantora. Mas, a uma certa altura da minha vida, o bichinho do palco me pegou. [Hoje] sou apaixonada por cena, pelo palco, figurino, luz e som. Tudo que a gente pode criar de mágico em cima do palco, dentro daquela caixinha preta, fazer acontecer mesmo. Fiquei apaixonada pelo ofício do palco. Mas eu queria mesmo era ser uma compositora e ficar na minha quietinha, mas eu fiquei apaixonada por esse momento. Porque é um momento, é um momento que passa. E bonito disso é justamente essa transitoriedade, entendeu? Então, mais bonito do que um DVD com um show meu, certamente é um show meu, você e eu lá. Eu te olhando, você me olhando, entendeu? Então, o ao vivo mesmo, pra mim, é o grande momento. É o ápice.
IMMuB: O que te faz compor?
Fátima Guedes: Eu trabalho melhor sozinha, na solidão mesmo. E mais do que nunca, ultimamente eu só faço música, eu só vou compor uma canção, se for importante que eu fale, entendeu? É como se fosse assim, uma necessidade do meu espírito e não uma acomodação ou uma necessidade de mercado. Quando eu componho, é porque eu preciso falar alguma coisa. Se eu estou passando por uma situação assim tensa, eu preciso dizer aquilo na música, então eu faço aquela canção pra mim. Se vai entrar num CD, se alguém vai gravar, se eu mesma vou colocar dentro de um show, pouco me importa. Eu preciso dizer aquela poesia ali. Como uma catarse minha. De verdade, minha mesmo. E essa catarse que é minha mesmo, ela vai fazer a conexão com com muitas pessoas, né? Porque a gente não sofre sozinho, né? Então, hoje em dia eu componho assim, tem que ser necessário. O que eu escrevo precisa ser necessário pra mim.
IMMuB: Você tem algumas parcerias nas suas composições. Tem alguém que você gostaria muito de ter feito uma parceria e ainda não aconteceu ou não será mais possível?
Fátima Guedes: Ainda não aconteceu uma parceria com o Guinga. Eu trabalhei o repertório do Guinga durante muitos anos. Eu era a cantora do Guinga, especializada no trabalho dele, focada, um trabalho difícil, um trabalho de técnica, um trabalho magnífico para mim enquanto cantora. E nunca tivemos a chance de compor nada juntos. É impressionante, não rolou, mas ainda pode rolar, temos tempo para isso pela frente. A gente sempre está prometendo. Não é possível, a gente nunca fez uma parceria! Um dia vamos fazer! Mas sem pressa, ao lado do Ginga, eu sou feliz cantando.
IMMuB: Que música brasileira você gostaria de ter composto?
Fátima Guedes: Várias. Muitas. Muitas. “Beatriz”[Chico Buarque/ Edu Lobo], [é uma que] queria ter composto. Mas eu tenho uma que é o “Violão”, que é da Sueli Costa com o Paulinho César Pinheiro, que todo mundo pensa que é minha, porque eu gravei. E aí eu adoro que todo mundo pense que é minha, mas não, é da Sueli Costa. Todo mundo acha, eu fico com vontade de ficar bem quietinha, mas eu tenho que fazer justiça aos compositores. Eu gostaria muito de ter feito essa canção. Que beleza, né? Sueli é maravilhosa.
IMMuB: Das músicas que você fez. Tem alguma que você tenha um carinho especial, por algum motivo?
Fátima Guedes: Eu sempre gosto muito das últimas. Da última, porque está mais na minha cabeça, está na minha memória mais fortemente. Mas as minhas músicas são feitas [por mim], mas elas não são minhas, entendeu? Então, elas têm uma outra vida, elas têm vida própria, elas têm o caminho delas. Então, não posso dizer que eu gosto mais de uma do que de outra, do que de outra. Acho que eu gosto mais da próxima, que é o que vai ficar na minha cabeça, que vai ser minha pesquisa, que vai ser... Enfim, eu sou uma pessoa muito da hora, do momento, sabe? Não sou muito passadista, não. Gosto de todas, mas eu acho que aquela que eu estou trabalhando no momento (ou a última ou a próxima) é a canção que vai mais me mobilizar.
IMMuB: O que você tem descoberto de novo e acha que todos deveriam se atentar?
Fátima Guedes: Gosto de coisas pontuais, de músicas que às vezes caem no meu coração. Um dia escutei uma música chamada “Chuva” da Andréa Dutra que é cantora, sempre se colocou como cantora e começou a compor. Eu achei ótima essa canção, bem feita, sabe, no formato, na qualidade da letra, muito interessante e inteligente. Enfim, tem muita gente aí despertando, despontando, né? São pessoas que beberam nas águas da MPB, da melhor MPB, pode ter certeza, dos anos 60, 70 e 80 ou 90. Beberam muito nessa fonte aí. Lembrei do Mauro Aguiar. Mauro Aguiar, maravilhoso, também já fiz uma parceria com o Mauro, ficou bem interessante, que eu me propus a fazer também. Mas também a convite dele: “ah, Fátima, bota uma letra aqui”. Eu falo assim: “eu não sou tão boa letrista quanto você imagina, mas eu vou tentar”. Aí fiz uma música chamada “Fruta de Voz”. Ah não, botei uma melodia, botei uma melodia dessa vez (é porque eu também troco às vezes!). Às vezes eu coloco melodia nas letras e às vezes eu coloco letras na melodia. No caso do Mauro Aguiar, eu coloquei melodia na letra dele, que é maravilhosa, maravilhosa.
IMMuB: Como é a sensação de ver suas composições se tornando parte da vida das pessoas, evocando memórias e emoções?
Fátima Guedes: Como é bom a gente poder sentir que faz parte do crescimento intelectual, espiritual de alguém, que faz parte da vida mesmo das pessoas. Quantos casais já não se encontraram dentro do meu show, por causa dessa ligação que tinham de gostar do meu trabalho? Quantas crianças já não nasceram desses relacionamentos aí, que ao escutar canções como “Lápis de Cor”, “Cheiro de Mato” ou “Arco-íris”, não se iniciaram também [na música], né? Enfim, é muito gostoso você saber que tem alguma influência benéfica na vida de outras pessoas. É muito interessante e é uma responsabilidade para a gente também.
IMMuB: O IMMuB se dedica a preservar a memória musical brasileira. Gostaríamos de saber a sua opinião sobre o papel da música na propagação da nossa identidade cultural e memória.
Fátima Guedes: Meu Deus, eu não sei nem por onde começar, porque a música de um povo é o espírito de um povo. Então, se a gente está escutando coisas não muito boas, com tanta facilidade, é porque nós precisamos reajustar nosso espírito a um patamar mais interessante, em termos estéticos e em termos éticos. Porque a palavra ética está lá embutida na palavra estética, né? E a gente precisa entender que a nossa responsabilidade é criar um ambiente de beleza, de filosofia, de respeito. E a gente faz isso naturalmente sem muitas teorias. Por isso é que a MPB é a música popular mais bonita do planeta, porque ela é filosofia também, ela é pensamento, ela é comunicação e acessibilidade sem muitas teorias. Ela trabalha o seu sentimento, seu espírito, mas também seu intelecto. Seja ela do estilo que for, seja ela da vertente que for, porque nós temos um país continental. Então, até mesmo as coisas de fora, todas as coisas nossas brasileiras, o samba, o jongo, o carimbó, tudo isso faz parte da nossa história e a MPB é tão grande que ela também captura para ela o bolero, a salsa, o pop, o rock. Tudo isso que a gente chama de MPB é música popular, boa, bem feita e inteligente, mesmo na sua forma mais folclórica, tem inteligência ali. Tem inteligência no trabalho do Jackson do Pandeiro, trabalho da Patativa do Assaré, trabalho de... sabe? Então é uma música popular, sim, mas é uma música popular especial. Quando a gente está conversando com alguém, com algum estrangeiro e que a gente canta rola um pedacinho do “Carinhoso" [Pixinguinha/ João de Barro], aí a pessoa fala assim: “mas isso é popular?”. Sim, essa é a nossa música popular. [E dizem] “Nossa, mas é que parece um erudito”. Que chique, né? É isso que a gente faz. Fica bonito.