Amigo ao Peito

Força, João!

segunda, 22 de janeiro de 2018

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Meu telefone tocou às 3 da manhã. Incrível que pareça, é coisa corriqueira aqui em casa. Mas esse telefonema...

-Alô, Ricardo...?

Uma voz mais ou menos familiar.

-Sim, sou eu.
-Ah, Ricardo, aqui é o João...
-João...?
-Gilberto...

Ele parecia não terminar as frases, a gente OUVIA as reticências. Mas nessa hora parei e fiz uma lista mental de quais amigos poderiam estar me passando esse trote. Lembrei que numa gravação na qual havia participado alguns meses antes alguém havia pedido meu telefone “para dar para o João”. Devia ser verdade, então. 

-Ô João, como vai?
-Ah, Ricardo... Teu trabalho é uma beleza, você é maravilhoso, um profissional de primeiríssima, ouro sobre azul... Um gênio na tua profissão...

E seguiu alguns minutos me elogiando, numa voz melíflua tão convincente que eu estava quase convencido que era aquilo tudo mesmo. Até que caí em mim e me dei conta que ele não conhecia meu trabalho!

-Obrigado, João, muita gentileza. No que posso te ajudar?
-Ah, Ricardo, meu violão precisa de uma regulagem. Ele anda indisciplinado, fazendo má-criação...
-Maravilha, a gente resolve isso fácil. Basta você trazer ele aqui.
-Pois é, Ricardo, esse é o problema, sair de casa anda complicado, a violência anda terrível, nem faço mais minhas caminhadas...

Parêntese: caminhadas, o João Gilberto??? Não falei nada, claro.

-João, você merece toda a minha deferência, eu teria o maior prazer de ir a você, mas preciso de minhas ferramentas e, principalmente, te ver tocar, para regular da melhor maneira. A gente resolve isso rapidinho.
-Ah, Ricardo... Mas você sabe como eu toco, toco do mesmo jeito há mais de 50 anos...
-Claro que sei, mas regulagem é que nem sapato, só testando.

Nessa hora me lembrei do falecido e querido Almir Chediak, que recebia ligações semelhantes de João pedindo que trocasse as cordas do violão. Almir ia, todo feliz, e pegava o instrumento na porta do quarto do apart hotel do gênio. Trocou as cordas diversas vezes, e jamais o viu pessoalmente...

Mais ou menos uma hora depois ele desistiu, com a mesma gentileza e carisma com que havia começado a ligação.

Pois contei essa história para Egberto Gismonti, que me devolveu outras 3 – sempre pelo telefone!:

Dulce Bressane, à época Nunes (que deve ser meu tema do mês que vem, uma pessoa linda), musa da Bossa Nova e de nossa música, recebia telefonemas semestrais dele:

-Ô Dulce, compra umas camisas para mim...
-Mas João, por que eu?
-É que você sabe comprar camisa boa para tocar violão...

Dulce, claro, comprava. 

O telefone de Egberto tocou. Do outro lado da linha, João:

-Oi, Egberto. Como vai tio Edgar?

O Tio Edgar do Egberto, ele sabia, havia morrido havia anos. Mas Egberto não se altera.

-Ô, João, ele está uma beleza, cada vez melhor!

João começa a cantar:

-Ó Carmo, cidade bela...

Hino do Carmo, música do Tio Edgar.

-Egberto, essa música é tão linda que acho que é minha...

Egberto chega em Nova Iorque, Naná Vasconcellos o convence a ficar num hotel meio longe. Ele vai, contrafeito, e na recepção recebe um embrulho: meio quilo de Café Pelé, sem remetente. As coisas são tão incomuns em sua vida que ele simplesmente vai para o quarto e, aproveitando a cafeteira, adorno comum nos quartos de hotel de então, resolve passar um café. No exato momento em que se prepara para bebê-lo, o telefone toca:

-Tá bom o cafézinho?

Claro, era João, e também claro, o autor do presente. Ficaram meia hora ao telefone, combinando um encontro, se tempo houvesse.

Naná chega para ensaiar, e Egberto comenta o ocorrido. E também comenta que torce para ocorrer o encontro, as agendas complicadas... Naná ri, um riso aberto de Naná que só Naná tinha.

-Egberto, o João está no andar de cima aqui do hotel!

Força, João!


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