Um papo com o Cazes

Garoto e os multi-instrumentistas da Era do Rádio

quinta, 14 de maio de 2020

Compartilhar:

Pouco antes do centenário de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, em 2015, fui entrevistado pelo jornalista Lucas Nobile para o documentário sobre este inigualável virtuose das cordas dedilhadas. E uma pergunta veio mesmo a calhar: por que Garoto tocava tão bem? 

Felizmente, pouco tempo antes havia sido lançado o livro "Gente humilde: vida e música de Garoto" de autoria do abnegado músico e pesquisador Jorge Mello e que revelou, entre tantas informações inéditas e relevantes, trechos do diário que Garoto escrevia regularmente, descrevendo sua rotina profissional. Tinha acabado de ler o livro pouco antes da entrevista e tive a resposta na ponta da língua:

_ O Garoto, o Zé Menezes, e outros craques da chamada Era do Rádio, tocavam bem porque tocavam o dia inteiro. Hoje em dia o músico passa mais tempo fazendo burocracia. O tempo que sobra é para tocar. 

Pode parecer estranho para os que não são músicos, mas pude testemunhar, através da convivência com profissionais ilustres como Radamés Gnattali, Chiquinho do Acordeom, Netinho do sax e clarinete, dentre outros, que o fato de passar alguns anos com uma rotina de tocar "pra valer", em três turnos: de manhã na gravadora, de tarde na rádio e de noite no cassino e depois boate, dava ao músico um reflexo, uma capacidade de execução que não se alcança apenas com conhecimento teórico e estudo disciplinado. 

Voltando ao Garoto, sempre tive curiosidade de saber como ele conseguia tocar tão bem tantos instrumentos. Perguntei ao Chiquinho, que esteve muito próximo dele como parceiro e companheiro de Trio Surdina e ele me disse que o Garoto só estudava violão. Nos outros instrumentos fazia apenas escalas cromáticas. Essa informação foi confirmada anos depois pelo Zé Menezes, que seguiu inicialmente os passos de Garoto, quando chegou ao Rio em meados da década de 1940. Menezes, por sinal, mesmo próximo dos 90 anos de idade e sem atuar tão constantemente, mantinha o tal reflexo, trocava de instrumento e saía tocando sem problemas. 

Um outro multi-instrumentista de grande atuação foi Laurindo Almeida que, embora tenha se tornado famoso com o violão e a guitarra, deixou gravações marcantes com outros instrumentos, como o banjo da abertura do seriado televisivo de faroeste "Bonanza" e o bandolim que executa o tema do filme "O poderoso chefão".

Durante um período de 20 anos, a partir de 1986, atuei como multi-instrumentista em gravações produzidas e arranjadas por Rildo Hora e cheguei a desenvolver a prática de trocar de um instrumento a outro sem precisar de adaptação. Exigências do trabalho.

Nos últimos tempos de sua curta trajetória de menos de 40 anos, Garoto mergulhou fundo no violão, criando uma obra que abriu caminhos, mas não deixou de atuar gravando e tocando na rádio com seus outros instrumentos. 

Nos dias de hoje, esse tipo de profissional praticamente não existe mais, não por falta de talentos, mas de demanda profissional. A produção de música instrumental cresceu em qualidade e diversidade, ignorando até a pouca viabilidade. O músico teve que se dividir, dar aulas, produzir, escrever projetos, fazer mestrado e doutorado e com tudo isso, falta tempo para tocar. Posso afirmar isso pois vivi esses dois momentos tão distintos, ao longo de mais de 40 anos de profissão.

Em tempo: o documentário sobre Garoto tem lançamento previsto para o segundo semestre deste ano. 

Henrique Cazes

Comentários

Divulgue seu lançamento