Escambo Sonoro

Gravidade D: o lado grave de Djavan (Parte 3)

segunda, 29 de janeiro de 2024

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Como um bom santo Milagreiro (2001), Djavan entrega ao público outro disco repleto de boas canções. A maneira sui generis com a qual o compositor utiliza nossa língua é conhecida de todos há muito, mas o modo como a liga da Farinha é confeccionada salta ao paladar sonoro. Ao usar “euforbiáceas”, o mestre-cuca do som demonstra a magistratura de um profundo conhecedor do nosso vernáculo. O baixista da vez é Serginho Carvalho, amazonense de nascimento e cosmopolita por vocação, Sérginho —  e não Sérgio Carvalho, — participou em: Assim Que Se Faz (2000) – Luciana Mello; Nascimento (2000) — Tomati; Amor pra Recomeçar (2001) – Frejat, entre vários outros. As linhas que fazem de Serginho outro milagreiro são: Lugar Comum, um blues estilizado; Sílaba e Brilho da Noite, com linhas necessárias à boa condução. Assim, fico aguardando você Cair em Si e notar o fretless de Serginho. 

Em relação às participações, figuram Cássia Eller na faixa homônima do disco, uma espécie de tributo à Granada; João Viana, filho de Djavan, em Infinitude. O baixista de Além de Amar é ninguém menos do que Marcus Miller. Dono de uma técnica sem igual ao aplicar o slap em grande parte da sua discografia, o baixista do Brooklyn se mostra incrivelmente eclético de posse do contrabaixo fretless, instrumento que hora ou outra aparece nos álbuns por aqui. A escolha das frases, dos harmônicos, da condução e do solo está na antípoda — em relação ao uso da técnica que o consagrou — dos trabalhos do músico estadunidense, demonstrando assim, sua assombrosa versatilidade.


Ao criar um mosaico sonoro em diferentes Matizes (2007), o décimo oitavo disco de Djavan é mais uma de suas declarações como autor, confirmando, uma vez mais, a excelência de sua obra. Sobre as linhas de baixo, Serginho Carvalho se destaca em Adorava Me Ver Como Seu, com solo de guitarra de Max Vianna; Delírio dos Mortais, com sua condução à la Big Louis e Desandou, outro blues estilizado. Em relação às canções, a quarta faixa fala de um lugar bastante conhecido por todos os brasileiros, algo que, de fato, nos deixa uma Fera sempre que o leão do Imposto vem rugir a nós.

Exclusivamente composto por releituras, Ária (2010) é inusitado em relação à enxuta formação, o que dá ao violão, baixo acústico, piano e percussão outra concepção sonora. No repertório, clássicos da música popular brasileira: Brigas Nunca Mais (Vinicius de Moraes / Tom Jobim), Treze de Dezembro (Luiz Gonzaga / Zé Dantas), Luz e Mistério (Beto Guedes / Caetano Veloso) e canções internacionais.


Um célebre conhecido retorna à banda com a mesma desenvoltura de antes e circula pela Rua dos Amores (2012) como um antigo companheiro. Longe de cometer qualquer Pecado na execução da sexta faixa, Marcelo Mariano incrementa a canção com uma levada poderosa. Também pudera, esses seus Ares Sutis de posse do instrumento sem trastes dão à canção notas acertadas e espaços respiráveis, fazendo com que tudo que Vive em nós se comungue com obra de Djavan. Ademais, a canção que dá título ao disco guarda certa atmosfera estática sem que o tédio venha nos encontrar.

Marcelo Mariano

Celebrando Vidas pra Contar (2015) e procurando Encontrar-te entre as notas mais graves da quinta corda do seu instrumento, Mariano age com a perspicácia de sempre. Sem qualquer Aridez na forma de tocar, a sétima faixa é bastante animada e repleta de boas frases. O movimento de M.M é único na condução de cada uma das músicas. Veja, por exemplo, as primeiras frases de Se Não Vira Jazz e as ghost-notes dos versos da canção. Em uma ode à Virgínia, Djavan relembra as influências legadas por sua mãe e seu desejo de vê-lo como Orlando Silva. A lembrança de escutarem Dalva de Oliveira e Angela Maria vem à tona de forma magnífica na canção. Ah! Não esqueçamos de que Dona Virgínia também levava seu rebento aos shows do Rei do Baião, ensinando desde cedo o lugar que seu filho ocuparia.

Em uma capa que parece conter uma referência ao Tutu (1986) de Miles Davis, Djavan produz um verdadeiro Vesúvio (2018) de músicas. A última delas, gravada em parceria com Jorge Drexler, é cheia de amor, poder pela natureza e política. Para quem se espanta com o uso das euforbiáceas, aperte os cintos até ouvir Orquídeas com os nomes mais curiosos das Asparagales. Em termos graves, as canções Dores Gris e Cedo ou Tarde com groove e slaps intimistas são as mais interessantes onde Arthur De Palla dá as caras. O baixista conta com trabalhos relevantes nos discos: As Coisas Simples da Vida (2016) e Escola Brasileira (2019), de Hyldon e Torcuato Mariano, respectivamente, além de ter trabalhado na banda do The Voice.

Arthur De Palla 

Finalmente, chegamos ao gran finale (até então) da obra de Djavan. Começando pelo começo, isto é, pela própria capa do disco, o músico surge altivo, trajando uma espécie de sobretudo medieval, nos lembrando, de alguma maneira, a rubra vestimenta de Dante Alighieri. Em sua última obra da década, vasta em letras enigmáticas e melodias majestosas, o músico está Num Mundo de Paz vibrante e cheio swing. Podemos imaginar que, celebrando sua boda de prata, o cantor deseja Ao Menos Um Porto, para sua voz. A sumidade que participa de Beleza Destruída é Milton Nascimento e qualquer adjetivo acoplado a sua figura fracassaria de pronto. Poderosíssimo é o groove e o uso da quinta corda em Servilhando. Marcelo Mariano, acostumado a trabalhar há anos com o compositor, conhece todas as minúcias e frases indispensáveis às suas canções. A última faixa pode confirmar o que se segue daqui em diante, afinal, quem trabalha há décadas com excelência acaba por se tornar um Iluminado com sua prole ao redor.

Afirmar que Djavan fez, e ainda faz, uma obra monumental em âmbito nacional e internacional não é nenhum exagero quando recordamos o uso aquilatado da língua portuguesa e dos acordes junto a melodias e letras egrégias. Compositor de uma obra incontestável, Djavan, ou simplesmente D (2022), completa seu ciclo de número setenta entre infernos, purgatórios e paraísos, tal qual um Deus, inventor de autêntica linguagem sonora.

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