Colunista Convidado

Illy revisita Elis em ‘Te adorando pelo avesso’

sexta, 12 de junho de 2020

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Projetada a partir de sua vitória no Festival de MPB da extinta TV Excelsior, em 1965, com uma performance fulminante em “Arrastão” (Edu Lobo/ Vinicius de Moraes), a cantora Elis Regina (1945-1982) comandou, em seguida, o programa de TV “O Fino da Bossa”. E também uma passeata contra as guitarras elétricas, quando a Jovem Guarda, de Roberto e Erasmo Carlos, passou a liderar a audiência. Mas, a ortodoxa porta voz da MPB, de temperamento forte, a quem o poeta dos diminutivos, Vinicius de Moraes, apelidou “Pimentinha”, logo trilhou outros caminhos, tendo participado do programa “Som Livre Exportação”, em 1971. 

Cinco décadas depois, parte de seu repertório é revisitada em levada pop, pela cantora baiana Illy (Cruz de Almeida Gouveia Santos), no álbum “Te adorando pelo avesso” (Alá/ Altafonte). O título tem interpretação hiper-realista já na capa, onde a solista utiliza o mesmo tipo de roupa cintilante da foto do LP “Elis”, de 1973. Só que...de cabeça para baixo. É, literalmente, o que ela faz com 12 músicas gravadas pela diva gaúcha em discos diversos – apenas “Ladeira da preguiça” (Gilberto Gil) faz parte da safra de 1973.

E como as demais, vem reembalada em outra formatação, sob produção dela e de dois dos principais músicos do disco, o baixista Gabriel Loddo e o guitarrista/tecladista Guilherme Lírio, responsáveis pela abordagem rascante da maioria das faixas – temperadas pela bateria de Pedro Fonte e a percussão de Marcelo Costa. Um dos exemplos de maior radicalidade é a demolição/ reconstrução do clássico antepassado “Na Baixa do Sapateiro”, de Ary Barroso, lançada pela estelar Carmen Miranda, em 1938. Redesenhado pelo aguçado baixo elétrico, o samba jongo original é seccionado em dois ambientes, com espaço para Illy trafegar entre a carícia e os agudos, de quem começou a carreira, ainda adolescente, no interior baiano, puxando trio elétrico. Depois, cantou em trilhas de peças de teatro, liderou o grupo Samba Dibanda, fez aulas na Oficina de Canto da UFBA, na Escola Baiana de Canto Popular, e debutou solo no projeto “Illy canta os cem anos de Caymmi”, em 2014. Já radicada no Rio, a cantora casada com Jorginho Velloso, sobrinho neto dos irmãos Caetano e Maria Bethânia, estreou, no teatro Ipanema, lançando o EP “Enquanto você não chega”, produzido por Alexandre Kassin, em 2016. Dois anos depois, no mesmo palco foi a vez do álbum completo “Vôo longe”.

Já o atual título, “Te adorando pelo avesso”, foi pescado na letra farpada de “Atrás da porta”, parceria de Chico Buarque e Francis Hime, que Illy singra em câmara lenta, em dueto com o desempenho cool do capixaba Silva, ambos escoltados apenas pelo clarinete de Loddo, o baixo de Lírio e a caixa de Pedro Fonte. Outro convidado do disco, o baiano Baco Exu do Blues, contrasta a voz roufenha com a cantora, no letárgico bolero “Me deixas louca”, pavimentado pelo bongô de Marcelo Costa. A composição do mexicano Armando Mazanero, versão do escritor Paulo Coelho, foi uma das últimas gravações de Elis, em 1981. “Estudando a letra dessa canção, notei como ela parece com a linha de muitas músicas de Baco. È muito visceral. E ele trouxe uma divisão super interessante para nossa versão”, elogia ela. Atabaques entrecortam a nostálgica valsa “Fascinação” (Maurice de Feraudy/ F.D. Marchetti, versão de Armando Louzada), sucesso de Carlos Galhardo, de 1943, que Elis reciclou, em 1976, agora atravessada por trombone e trompete soprados por Antonio Neves.

Regravada por Elis Regina, no mesmo ano, em homenagem à sua inspiradora  Angela Maria, que emplacou o sucesso, em 1953, a candente “Vida de bailarina” (Américo Seixas/ Dorival Silva) ressurge num pique de bolero pontuado por glockenspiel, com a voz da cantora reprocessada eletronicamente. Embolerado desde o original, o auto explicativo “Dois pra lá, dois pra cá” (João Bosco/ Aldir Blanc) acentua a afro latinidade da cantora, que desidrata o samba de embalo “Vou deitar e rolar” (Baden Powell/ Paulo Cesar Pinheiro), ao final, engolido por batucada com reco-reco, agogô, tamborim, caixa clara e garrafa. Mesmo sem tal intenção explícita, a seleção do disco acaba por fustigar a atual idade das trevas do país. Do sarcasmo de “Alô, alô marciano”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho (“a crise ta virando zona/ cada um por si/ todo mundo na lona”), aos mísseis certeiros do recém falecido Aldir Blanc (“O Brazil não merece o Brasil/ o Brazil tá matando o Brasil”) em “Querelas do Brasil” (com Mauricio Tapajós), numa repaginação afro reggae, ao flamejante ska revirado em “Como nossos pais”, a bordo do recado recorrente de Belchior: “Apesar de temos feito/ tudo, tudo, tudo o que fizemos/ ainda somos os mesmos/ e vivemos como nossos pais”.

Tárik de Souza

Foto: Julia Pavin

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