Sobre a Canção

Imperial, o rei do pastiche

Quarta, 14 de agosto de 2024

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Carlos Imperial foi um dos maiores picaretas da história da música brasileira, se não o maior. Não só na música, é verdade: sua vida tem lances inacreditáveis como o boato que ele espalhou sobre o ator Mário Gomes, seu desafeto, de que, num ato homossexual, teria ficado com uma cenoura entalada no ânus e precisado ir ao pronto-socorro. A história não tinha absolutamente nada de verdadeiro, mas Imperial conhecia as pessoas certas e ela se propagou como fogo na palha e foi tida como verdadeira por anos – o apelido Cenourinha acompanhou Mário Gomes eternamente. Outros boatos ele espalhava apenas para se divertir, como quando passou a afirmar que Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, havia sido gravada pelos Beatles. A afirmação não tinha pé nem cabeça e não havia nenhuma comprovação, mas seu nome fazia com que absurdos como este permanecessem circulando como verdade.

Outra história que mostra o senso de oportunismo de Imperial, acompanhado de pouco ou nenhum escrúpulo, é quando ele, despois de ser o vereador mais votado da cidade do Rio de Janeiro em 1982, pelo PDT, se lançou candidato a prefeito em 1985 pelo recém-criado por ele Partido Tancredista Nacional. Explica-se: Tancredo Neves, eleito presidente pelo Colégio Eleitoral no início do ano, morrera antes de tomar posse, causando comoção nacional. Imperial então ignora olimpicamente o fato de Tancredo ser filiado ao PMDB e funda um partido para surfar na onda desta comoção, com o slogan “Vai dar zebra!” e acompanhado sempre por mulheres seminuas no programa eleitoral gratuito de TV. A estratégia deu em nada e Imperial, após algumas outras tentativas frustradas, abandonou a política partidária.

Em suma, Carlos Imperial não valia nada. Como estas histórias, há dezenas de outras. E no entanto, a música popular brasileira deve muito a ele. Imperial dizia a quem quisesse ouvir que só estava nessa de música para conquistar mulheres. Mas não como músico, embora tocasse piano, acordeom e violão, e sim como produtor. Seu maior talento era o senso de oportunidade, e com ele Imperial criou movimentos musicais fictícios como a Pilantragem – para os quais atraiu músicos como Wagner Tiso, Paulo Moura e Cesar Camargo Mariano, escoltando a estrela Wilson Simonal -, lançou nomes como Roberto Carlos e Elis Regina (ele como imitador de João Gilberto e ela de Celly Campelo, musa da Jovem Guarda), além do mais tarde humorista Paulo Silvino como cantor de rock (!). E foi o responsável por tirar a iniciante Clara Nunes do universo de boleros e um flerte com o Iê-iê-iê e torná-la definitivamente uma sambista. Assim como Malcolm McLaren, o dono de uma boutique londrina que decidiu lançar um grupo de rock para fazer marketing da loja e acabou praticamente criando o movimento punk, Imperial podia até não se importar com a qualidade artística, mas, por vias tortas, chegou inúmeras vezes a ela.

O caso de Clara Nunes é exemplar. Clara, vinda de Minas Gerais, tinha gravado seu primeiro álbum em 1966, “A voz adorável de Clara Nunes” – título sob medida para apresentá-la ao público. Mas o repertório era formado basicamente por canções românticas, com títulos como “Poema do Desencontro” (Silvino Neto), “Sonata de quem é feliz” (Paulo Aguiar e Gabriel Pessanha) e “Canção de sorrir e de chorar” (TIto Madi). O álbum passou em brancas nuvens, mas Clara entrou no radar de Imperial, que a conheceu por ela ser namorada de Aurino Araujo, irmão de Eduardo Araújo, este grande amigo de Imperial e estrela da Jovem Guarda com sucessos como “O bom” – de autoria de Imperial.

O que levou Carlos Imperial a enxergar uma sambista em Clara não é sabido, e em alguns momentos ele próprio parecia não crer na possibilidade de ela fazer sucesso, chamando-a de caipira em comentários com outras pessoas. Mas o movimento de levar jovens brancas e bonitas a cantar samba, de forma a aumentar sua aceitação junto ao público de classe média, não aconteceu apenas com ela: paralelamente, Beth Carvalho se movia na mesma direção. Em 1968, ela estouraria com “Andança”, de Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi, terceiro lugar no Festival Internacional da Canção, da TV Globo, e firmaria sua carreira de sambista. E no mesmo ano Clara grava num compacto “Você passa e eu acho graça”, de Carlos Imperial e ninguém menos que Ataulfo Alves, que a defendera logo antes no Festival Nacional de Música Popular Brasileira, da Rede Excelsior – ela acabaria em quinto lugar, mas quase seria desclassificada por ter feito sucesso antes da final.

Mas é preciso dar aqui um passo atrás para contar de onde vinha a relação entre Imperial e Ataulfo. E vinha, por incrível que pareça, da Jovem Guarda. Paulo Cesar de Araújo, no livro "Roberto Carlos em detalhes", conta que, em 1967, como resposta às críticas de músicos tradicionais ao sucesso do movimento de Roberto e Erasmo Carlos, Imperial sugeriu que Roberto convidasse um sambista, de preferência negro, ao programa Jovem Guarda, de enorme sucesso. E sugeriu Ataulfo. O convite foi feito, Ataulfo foi, e ele e Roberto cantaram juntos. E Roberto gravou “Ai, que saudades da Amélia”, de Ataulfo e Mário Lago.

Ataulfo e Imperial compõem então juntos “Você passa e eu acho graça”, que consagra Clara Nunes. O compacto faz grande sucesso e acaba encabeçando seu segundo álbum. Mas terá sido mesmo Imperial o responsável por esta virada? Clara conta:

"Ataulfo eu conheci através de um ex-secretário dele, Jorge Santos, e nós nos tornamos grandes amigos. E naquela época eu cantava um estilo de música e o Ataulfo sempre me aconselhava. Dizia 'Clarinha, canta samba, você tem que cantar música brasileira, você tem uma voz tão boa!'. E foi também através dele que eu fui então até a Odeon, naquela época, e falei com meu diretor, Milton Miranda, que eu queria gravar samba. E o Ataulfo foi comigo, inclusive, e então me deu uma música pra gravar. 'E qual a minha alegria não foi, que foi sucesso', 'Você passa e eu acho graça', uma parceria dele com Carlos Imperial. Portanto, Ataulfo foi muito importante na minha vida e na minha carreira, uma pessoa inesquecível".

E aqui temos uma versão divergente. Clara atribui a Ataulfo o protagonismo na influência sobre sua decisão de gravar sambas, e relega Imperial a um papel coadjuvante, mencionando-o quase de passagem, como se sua coautoria fosse meramente acidental.

Não há como auferir quem está puxando a brasa para sua sardinha. Para Clara, mesmo anos depois, é interessante contar sua história como sendo apadrinhada por um bamba do samba, e não por um produtor oportunista ligado à Jovem Guarda. Ser acompanhada por Ataulfo à Odeon serve de legitimação à sua decisão. Já de Imperial, espera-se quase naturalmente que se proclame o responsável pela virada da carreira de Clara. Porém, sendo o mitômano que era, fica igualmente difícil levar a sério tudo o que contava.

E de onde podemos tirar indícios de quem tem razão? Menos dos relatos pessoais, e mais daquilo que estas histórias produziram, ou seja, a música. E neste caso, o samba ”Você passa e eu acho graça”. O que será que seus versos têm a dizer sobre seus autores e sua intérprete? Para saber, é preciso recuar novamente um pouco, e visitar outro compositor e outro samba: Chico Buarque e seu “Quem te viu, quem te vê”.

Chico Buarque conta que “Quem te viu, quem te vê” é uma encomenda de Nara Leão. Chico compôs o samba, com seu refrão marcante e suas cinco extensas estrofes contando a história de um amor malogrado, em que a mulher sobe na vida enquanto ele permanece pobre – tudo contado na forma de metáforas carnavalescas. Cada verso é composto por uma redondilha (verso de sete sílabas métricas) dobrada, quase todos formando uma oração completa. Chico conta que, ao terminar a canção, achou-a enorme, mas não conseguiu decidir quais estrofes cortar. Decidiu enviá-la para Nara assim, com a recomendação de que ela escolhesse três das estrofes.

Só que Nara não quis escolher, e gravou todas, o que contrariou Chico, mas, como ele conhecia Nara e sabia que ela não mudaria de ideia, acabou aquiescendo. Nara gravou o samba em seu álbum de 1967, “Vento de Maio”, ao lado de “Com açúcar, com afeto”, também encomendada por ela a Chico, “Noite dos Mascarados” e “Um chorinho”. E Chico a gravou por sua vez no mesmo ano – e com todas as estrofes – em seu segundo álbum. Mas antes, Jair Severiano e Zuza Homem de Mello, em seu livro “A canção no tempo – 1958/1985”, relatam:

“Quem te Viu, Quem te Vê” foi mostrado ao público pela primeira vez no dia 16 de fevereiro de 67, durante o “Pra Ver a Banda Passar”, um musical comandado por Chico Buarque e Nara Leão e criado pela TV Record em cima do sucesso de “A Banda”. Por causa da timidez dos apresentadores — classificados pelo produtor Manoel Carlos como “a maior dupla de desanimadores de auditório” — o programa não obteve sucesso, ao contrário de “Quem te Viu, Quem te Vê”, que logo estaria nas paradas radiofônicas.

Curiosamente, Zuza e Jair consideram ‘Quem te viu, quem te vê” um samba “bem ao estilo de Ataulfo Alves”. O que nos leva de volta a “Você passa e eu acho graça”. Um samba contando em segunda pessoa a história de um amor malogrado, cuja estrutura é formada por um refrão marcante e estrofes de redondilhas dobradas… exatamente a mesma de “Quem te viu, quem te vê”, lançada um ano antes e de grande sucesso.

E aqui está a pista para entender a parceria de Carlos Imperial e Ataulfo Alves. De Ataulfo, ela tem provavelmente sua melodia de alta voltagem; já de Imperial, ela tem a maior parte da letra, que chegara a ser mostrada a Aurino Araujo antes de Ataulfo, mas sem ter recebido melodia. Uma letra que trafega entre chavões como “Sem saber que eu era nada / fiz meu tudo de você” e a força de seu refrão contrastante com o restante da letra – ela contando as agruras passadas e ele tratando do presente. “Você passa e eu acho graça” abre mão de todas as metáforas de “Quem te viu, quem te vê” em troca de um discurso tanto direto quanto genérico, e de quebra ainda “corrige” o excesso de estrofes que incomodou Chico em sua própria composição.

Mas principalmente, de Carlos Imperial “Você passa e eu acho graça” tem a capacidade de perceber para que lado vai o vento e içar a vela nesta direção – e também de copiar desavergonhadamente a tendência dominante, que o digam Roberto Carlos e Elis. Mas não necessariamente sem talento. “Você passa e eu acho graça” é um pastiche de “Quem te viu, quem te vê”, uma versão genérica de um samba de sucesso feita por encomenda para lançar uma nova sambista – uma estratégia tão eficaz quanto a de Clara pintando a si própria como apadrinhada de Ataulfo, independente do grau de veracidade de sua narrativa. E é também um excelente samba, e não apenas pela contribuição de Ataulfo, embora tenha estado à beira de se tornar um iê-iê-iê.

E no entanto, o álbum de Clara lançado no esteio do sucesso deste samba não era um álbum de sambas, embora traga outra parceria de Imperial e Ataulfo, “Você não é como as flores”. Mas tem também dois Chicos Buarque legítimos: “Sabiá”, dele com Tom Jobim, e “Desencontro”; “Sucedeu assim”, outro Tom, este com Marino Pinto; e tudo isso ao lado de um Noel Rosa e um Martinho da Vila. Um álbum híbrido, ainda indeciso, o que contraria em parte o relato de Clara, que pinta uma decisão por parte dela. Mas é certo que o sucesso de "Você passa e eu acho graça" foi decisivo para que Clara se definisse sambista e mesmo, mais tarde, tivesse a independência de gravar outros estilos quando achasse por bem. "Você passa e eu acho graça" é um pastiche e Carlos Imperial foi um cafajeste – mas um ótimo samba e um adorável cafajeste, dessas contradições que a arte tem e a vida imita. E, contraditórios assim, ambos tiveram o condão de determinar direções na música brasileira de forma duradoura.

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