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Instrumentistas para além do virtuosismo: a marca distintiva dos grandes nomes da música brasileira

terça, 05 de janeiro de 2021

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O violonista Yamandu Costa comentou, em uma bonita entrevista, sobre o fato de alguns instrumentistas terem sido capazes de dignificar atuação de músicos acompanhadores, sidemans, fazendo com que estes ocupem, de forma definitiva, o lugar  de reconhecimento que lhes é devido.

Em sua fala, a grande sacada do músico gaúcho é que a valorização desses músicos passa, fundamentalmente, pela sua capacidade de, sobretudo, “cristalizar uma linguagem”. O fato é que, na Música Popular Brasileira, existem inúmeros músicos virtuosos em seus instrumentos, com amplo repertório, alguns com ouvido e capacidade de execução invejáveis – privilégio de um país entrecortado por ricas tradições musicais. Mas há algo além. Em alguns raros momentos, alguns desses músicos sobressaem em sua criatividade e algo diferente começa a surgir: uma outra forma de se pensar o fazer musical e, especialmente, uma forma de tocar própria, pela qual se reconhece o artista imediatamente.

Yamandu cita um desses casos mais evidentes na nossa música: o do violonista Dino 7 cordas. Este fundou uma forma única de se pensar e se tocar o violão de 7 cordas, com cordas de aço, voltada para o contraponto, nas frases graves conhecidas como baixarias. Com o fraseado malandreado, brincando com a melodia, de um jeito inconfundível, o violão do Dino é um exemplo paradigmático de músico que conseguiu deixar a sua marca no repertório que gravou, e não é à toa que ele possui uma legião de discípulos, que encaram a sua obra como uma verdadeira escola de música.

Há algo, nesses casos, que causa uma sensação ímpar: é como se aquela forma de tocar sempre estivesse ali, como se as frases graves do violão do Dino 7 cordas sempre estivessem no samba. De repente, parece inimaginável, para os que vem depois, uma roda de samba sem um violão de 7 cordas.

De fato, foram poucos os instrumentistas que, no século XX, definiram uma forma muito característica de tocar ao ponto de criar, a partir deles, uma escola, uma linguagem, uma forma específica ou mesmo um gênero musical, a exemplo do que realizou Django Reinhardt ao fundar, no jazz, a forma musical tão peculiar do jazz cigano. Mas, entre os mais diversos músicos, há muitos que, se não chegaram a criar um subgênero, deixaram em determinada tradição musical a sua marca pessoal, mudando os rumos dos que vieram depois deles. 

Dominguinhos, por exemplo, possuía um traço tão marcante em forma de se colocar no palco e nas gravações que há um registro da sanfona que, ao ser ouvido, remete imediatamente ao seu jeito de tocar. Também a performance de alguns de seus seguidores, especialmente do sanfoneiro Mestrinho, nos levam imediatamente ao som de seu mestre, de maneira inconfundível. É bonito ver como um grande instrumentista é capaz de reverberar a sua contribuição, de se fazer multiplicar, influenciando as formas de tocar de outros artistas, desenvolvendo mais e mais a sua tradição musical.

E não são poucos os que, na música brasileira, deixaram a sua marca e enriqueceram os rumos do nosso repertório. Algumas vezes, o legado de um artista é um detalhe, uma pequena mudança de direção: é o caso do grande zabumbeiro Quartinha. No gênero do xaxado, que ficou consagrado ao ser divulgado nacionalmente por Luiz Gonzaga e capitaneado pela eterna Marinês, Quartinha propôs um pequeno deslocamento rítmico, criando uma alternativa à “levada básica” do xaxado no zabumba, com um suingue próprio, que foi absorvido pelos zabumbeiros ao redor do país: uma observação pessoal sua, uma sutileza – mas que faz toda a diferença.

Contribuições como essa existem de formas muito distintas: uns criam e consolidam um instrumento musical, como é o caso do recém-falecido Ubirany, fundador do grupo Fundo de Quintal e criador do repique de mão. Outros são responsáveis por verdadeiras metamorfoses estilísticas em um gênero, como Jackson do Pandeiro, com o rico casamento que propôs entre o côco e o forró; outros, ainda, são responsáveis por expandir ou recolocar um instrumento musical, ampliando as suas fronteiras: é o que Naná Vasconcelos fez com o berimbau, por exemplo. 

É bem verdade que há também os cantores, frontmans, que criaram, a partir de experimentos pessoais, modos muito próprios de se colocar, fundando uma forma de se expressar, como Bob Marley, na música jamaicana, e Luiz Gonzaga, na música nordestina.

Estes são particularmente interessantes por serem vetores extraordinários não só de uma forma de cantar e tocar, sendo também precursores de uma identidade social: fundaram uma forma de se vestir, de falar, de se comportar, moldando mesmo uma ética própria para os músicos que os seguem. Mais que isso, moldaram, através da sua música, uma forma particular de existir no mundo.

Seja no caso dos músicos acompanhadores ou dos grandes cantores, o que é claro é que um certo grau de virtuosismo é sempre importante, mas que a marca registrada dos grandes nomes da música é, mais que isso, a capacidade de fazer algo especial, único, dentro de uma tradição musical, sem recorrer a invencionices exuberantes — conquistas de uma sensibilidade própria que nasce nos instrumentistas que se fazem imersos na sua atividade, em um estilo próprio de tocar. 

É assim, justamente pela capacidade dos instrumentistas de se reinventarem, de adicionar pequenas camadas criativas capazes de redefinir os caminhos de nossa música, que vivem as tradições musicais no Brasil. Menos porque esses músicos são gênios iluminados e mais porque estamos rodeados de pessoas que dedicam a sua vida e a sua criatividade integralmente  ao seu ofício.

Heitor Zaghetto 

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