Itamar Assumpção 70 anos
A força impetuosa de Beleléu, vulgo Nego Dito
Um bandido romântico, briguento, que bota inimigo ou desafeto pra correr, que mata a cobra e mostra o pau pra quem quiser ver. Nascido no Tietê, se está de lua é melhor não provocar: ele se manda pra rua, destranca porta a pontapé e, se tiver tomado umas e outras, arranca até o rabo de satã. E se chamar a polícia, vira onça e quer matar!
De quem estamos falando? Do personagem Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito. O criador? Francisco José Itamar Assumpção, vulgo Itamar Assumpção, cantor e compositor brasileiro falecido em 2003, que estaria completando 70 anos no dia 13 de setembro de 2019.
Integrante da lista dos “malditos da MPB”, Itamar criou o personagem Nego Dito já para o seu conceitual disco de estreia, Beleléu, Leléu, Eu, em 1980. No disco, assim como o protagonista de uma peça, Nego Dito entra e sai de cena diversas vezes entre uma faixa e outra, e se tornou personagem recorrente na obra de Itamar ao longo de toda a sua carreira. Com biografias semelhantes, o criador acabou ficando muito associado ao personagem, e pouco ou nada fez para dissociar-se dele. Afinal, ambos nasceram no Tietê, eram orgulhosamente negros e ligados à marginalidade (Nego Dito à marginalidade social e Itamar, à cultural). Há, no entanto, uma diferença primordial entre os dois: se Nego Dito usava a força para quebrar portas a pontapés, Itamar a usava para fazer música. Uma música impetuosa, irreverente e de personalidade única.
Filho da contracultura, Itamar Assumpção fez parte do movimento que ficou conhecido como Vanguarda Paulista. Trata-se de movimento cultural nascido entre as décadas de 70 e 80, cujo ideal político-estético partia de uma produção independente, isto é, distante das regras ditadas pela indústria musical e dos modismos reducionistas do mainstream cultural. Assim, os integrantes do grupo fizeram do Teatro Lira Paulistana, em São Paulo, o palco principal de suas inquietudes, a partir da montagem de espetáculos teatrais e musicais que davam vida aos projetos heterogêneos - porém igualmente potentes - de nomes como os de Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Língua de Trapo, Premeditando o Breque e, claro, Itamar Assumpção.
Ao longo de toda a carreira, Itamar permaneceu fiel a esse espírito, tendo lançado grande parte de seus discos por selos independentes. Sua produção musical foi marcada pela mistura de ingredientes do funk, reggae, rock e MPB, além do samba, grande paixão desde os cultos afro-religiosos presenciados na infância e explicitada em seu disco em homenagem a Ataulfo Alves, Pra sempre e agora, de 1996.
Some-se a essa sonoridade miscigenada uma poesia contundente e discursiva, de frases curtas e rimas inusitadas, privilegiando sempre o ritmo, soberano incontestável de sua produção musical. Poesias feitas quase sempre sob a ótica de deliciosa irreverência, passando ora por letras bem humoradas, ora por assuntos tão universais quanto o amor ou temas tão tristes e brasileiros quanto as injustiças sociais e o racismo. Essas canções, muitas feitas em parceria com Alice Ruiz, Alzira Espíndola e Ná Ozzetti (parceiras mais recorrentes), estão espalhadas tanto por discos inesquecíveis de Itamar, como Às próprias custas, Sampa Midnight e Bicho de Sete Cabeças (volumes I, II e III), quanto pela obra de alguns intérpretes atentos à força arrebatadora desse artista que foi chamado de “Hendrix da Vila Madalena” mesmo sem tocar guitarra.
Em pouco mais de vinte anos, Itamar Assumpção construiu uma obra vigorosa e cheia de vitalidade, porém (e talvez por isso) sem concessões aos ditames comerciais da indústria cultural brasileira. Para sempre iconoclasta e inconformado, morreu “maldito” e desgostoso com os rumos da cultura nacional, como explicitou na letra de Cultura Lira Paulistana, lançada em 1998 no álbum Pretobrás:
Pobre cultura como pode se segura
Mesmo assim mais um pouquinho
E seu nome será amargura ruptura sepultura
Também pudera coitada representada
Como se fosse piada
Deus meu por cada figura e compostura
Onde era ataulfo tropicália
Monsueto dona ivone lara campo em flor
Ficou tiririca pura...
Mas hoje, mesmo depois de sete décadas de seu nascimento e mais de dez anos de sua morte, a música de Itamar Assumpção continua ressoando e resistindo através de vozes como as de Zélia Duncan e Ney Matogrosso, intérpretes fundamentais de sua obra, e de Anelis Assumpção, sua filha, também cantora e compositora, que não esconde suas raízes na hora de fazer música.
Afinal, Itamar não precisa estar aqui fisicamente para ser ouvido. Está aí Benedito João dos Santos Silva Beleléu, quebrando vidraças e arrombando portas, berrando para ser escutado.
Neste caso, é melhor não contrariar: escute Beleléu, vulgo Nego Dito, vulgo...Itamar Assumpção!
Texto por: Tito Guedes
Referências:
- ITAMAR Assumpção. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa12536/itamar-assumpcao>. Acesso em: 27 de Ago. 2019. Verbete da Enciclopédia.