Um papo com o Cazes

Jacob do Bandolim, um centenário para se refletir

sexta, 05 de janeiro de 2018

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"Assim como se fora um auto de qualificação, de um escrivão na qualidade de réu, vou aqui qualificar-me: Jacob Pick Bittencourt (Pick, pê, i, cê, cá); nascido no Estado da Guanabara, na Maternidade de Laranjeiras; criado na Lapa; nascido em 14 de fevereiro de 1918; filho do farmacêutico Francisco Gomes Bittencourt e da polonesa Rachel Pick; morador à Rua Rubem Silva, 62, em Jacarepaguá; serventuário da Justiça e escrivão titular do juiz de direito da 12a  Vara Criminal do Estado da Guanabara..."

Com essas palavras, Jacob iniciou seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som em fevereiro de 1967, um depoimento que é tremendamente informativo sobre o aspecto pessoal, humano do grande músico. Naquele momento, Jacob estava prestes a gravar "Vibrações", talvez o Lp mais consagrado da história do choro, em que aparece maduro, com o solo e o acompanhamento perfeitamente integrados, no auge de seu perfeccionismo.

A obsessão pela qualidade, que marcou toda sua discografia chegava ao ponto mais alto e até hoje, "Vibrações" é uma rara unanimidade dentre os chorões e amantes do choro. Se no campo da realização musical Jacob foi e continua sendo uma referência, no que diz respeito ao pensamento crítico sobre o choro e suas trajetórias, julgo que já é hora de superarmos os dogmatismos "jacobianos" que têm impactado até os jovens chorões do século XXI. Vou citar apenas três exemplos, que poderiam ser dez ou vinte, dentre coisas que Jacob falou e outros repetiram acriticamente.

• O choro nasceu do encontro das três raças tristes: o negro, o índio e o português. (Depoimento ao MIS)
Ora, isso é uma bobagem musicológica que até hoje é repetida, por exemplo como definição do choro no documentário "Brasileirinho". A música europeia (não só a portuguesa) e a constante busca da surpresa rítmica, marca da influência africana, estão presentes. Mas e o índio? 

• A harmonia do choro tem de ser quadrada. (Depoimento ao MIS)
Jacob parecia não perceber que o uso dos acordes alterados, que ele creditava a bossa nova, já fazia parte da prática de Radamés, Garoto e outros modernizadores radiofônicos há mais de duas décadas. Ele próprio não respeitava essa regra, mas a ditava para os outros.

• Em 1953, dei entrevista ao jornal "O Tempo" de São Paulo, dizendo que em dez anos o choro estaria morto. Portanto, em 1963. E não está? (Depoimento ao MIS)
Não, Jacob. O choro não morreu em 1963, nem em 1969 quando você se foi, nem em 1973 quando Pixinguinha partiu. O choro vive e atravessa hoje uma fase mais plural, com conservadores e progressistas produzindo. A roda de choro tampouco acabou, apenas se mudou para o bar, devido a falta de quintais e varandas. 

Pelos três exemplos acima citados, de conceitos ainda levados a sério por alguns, sugiro que o centenário de Jacob seja um momento para glorificar sua música e deixar de lado o projeto de ideólogo que ele tentou ser. Um projeto carregado de reacionarismo, contaminado pelo ódio e a inveja, que não condiz com a arte do grande bandolinista.  


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