Amigo ao Peito

Jaime, Jaimeira, Meira

quinta, 21 de março de 2019

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Estava conversando com meu amigo Celso Lemme, aluno por muitos anos do enorme Jaime Florence, o Meira. Resolvi escrever a respeito, um personagem fascinante – breve teremos mais histórias. 

Meira, para quem não associa o nome à pessoa, foi professor de muita gente boa, a começar por Baden Powell. Era um ser especial: por exemplo, uma vez ganhou uma caneta de ouro, toda bonita. Foi trabalhar. Voltou, a esposa, dona Elza, perguntou:

Meira, cadê a caneta?
– Que caneta?
– A de ouro, que você ganhou ontem!
– Ah... Eu estava orientando alguém, uma pessoa pediu uma caneta, não vi direito, entreguei, ela deve ter esquecido de devolver...
Meira, para quem? Uma caneta de ouro...

Outra situação comum era dar aula de graça.

Meira, aquele rapaz não paga não?
– Não, ele está começando, não tem condições.
– E o violão que ele está usando?
– Pois é, ele, como disse, está começando, não tem condições, comprei um violãozinho pra ele...
Meira, não quer fazer mais nada por ele não?
– Olha, se você puder fazer um lanchinho...

A vida da dona Elza não era fácil. Uma pessoa gentil, bondosa, não deve ser julgada pelo contraponto com a insanidade gentil do marido. Que chegava tarde, muito tarde...

Meira, teu programa não acabou às 4?
– Acabou.
– São 10 horas, Meira.
– Ah, é. Mas sabe, depois do meu tem o programa do Jair de Taumaturgo, tem muito calouro, muitos não têm quem acompanhe, não têm violão, pode ser a oportunidade da vida deles...

Celso chegou lá por recomendação de seu colega da faculdade de medicina, Maurício Carrilho (nenhum dos dois virou médico, Celso é economista e Maurício, well, um dos maiores violonistas do país). Chegou, cumprimentos, Meira estava na varanda onde dava aula, Celso explicou suas pretensões, e ele, com o cigarrinho no canto da boca:

– Muito bom, o que você vai cantar?

Ele estranhou: será que me expressei mal? Queria tocar violão apenas. Resolveu explicar tudo de novo. O mestre acedeu, e repetiu:

– Muito bom, o que você vai cantar?

Estranheza, será que o professor tinha algum problema de audição? Explicou tudo de novo, e pela terceira vez:

– Muito bom, o que você vai cantar?

Ali desistiu de explicar, resolveu cantar mesmo. Cantou algo, Meira o acompanhou com a mestria de sempre. Disse:

– Muito bom. Agora eu começo e você canta de novo.

Tocou, mas em outro tom. Acabada a cantoria, marcaram dia e hora corretos em que as aulas ocorreriam. Anos depois Celso entendeu: fazia isso para checar se a pessoa tinha condições de aprender algo, se tinha algum ritmo, se percebia uma modulação. Não era o caso de cantar bem ou mal. Não tendo, ele diria que estava sem horário livre, mas que assim que houvesse uma chance o chamaria. Dessa forma não magoava ninguém, nem pegava dinheiro por uma aula que considerava inútil. Mais que um gênio, um homem bom.

Uma pausa nas histórias: Celso herdou um dos violões do mestre (Mauricio herdou o outro). Eram os alunos mais amigos, mais próximos, mas Celso, que não é profissional, nunca se conformou com essa posse, se considerava guardião do instrumento. Após 20 anos, resolveram o que fazer: doá-lo à casa do Choro e esta, por sua vez, nomearia um guardião para usá-lo e, em algum momento, passar adiante. O escolhido foi o violonista Iuri Bittar, por sua competência, talento e por ter feito sua dissertação de mestrado sobre Meira (o excelente trabalho pode ser baixado aqui). Aliás, nessa entrega, constrangeram sua filha Yvonne a cantar, acompanhada pelos violões do pai. É uma excelente cantora, que apesar dos apelos do pai, nunca se animou a ter uma carreira. Sempre que varria a casa, cantava lindamente, acompanhando a aula que o mestre dava. Um dia, este veio a ela e disse:

– Pronto, agora você vai ter como começar uma carreira de cantora!

E deu-lhe uma vassoura novinha.

Seu nome era Jaime Florêncio. Jaimeira era o apelido dado pelo irmão (ou pelo pai), virou Jameira, e em seguida, Meira. Seu parceiro Augusto Mesquita implicava com o sobrenome Florêncio. Uma dia sugeriu: 

– Por que você não muda para Florence (“florrânce”)? Assim, numa carreira internacional, fica mais fácil pronunciar, um nome francês. 

Concordou, mas para sempre ficou Florence, em português mesmo, e acabou imortalizado como Meira

Um dia Celso chegou para a aula e havia uma senhora, uma linda menina com um cavaquinho e um garoto, pequeno, gordinho, com um violão.

– Professor, errei de horário?
– Não, ele vai participar da aula com a gente. Senta aí, toca o que estudamos semana passada.
– Mas ele estudou as mesmas coisas?
– Toca.

Tocou, e o moleque foi atrás. Meira o instigava a fazer variações, improvisos, e ele fazia, com extrema e sobrenatural competência. Passaram por todo o repertório de Celso, e este, maravilhado com aquela criança muito séria. Ao final, se despedindo, o mestre disse:

– O futuro ninguém sabe, mas você deverá ouvir falar muito dele, e vai gostar de ouvir. O nome dele é Raphael Rabello.

O filho de Celso se chama Rafael.


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