Jaime, Jaimeira, Meira
Estava conversando com meu amigo Celso Lemme, aluno por muitos anos do enorme Jaime Florence, o Meira. Resolvi escrever a respeito, um personagem fascinante – breve teremos mais histórias.
Meira, para quem não associa o nome à pessoa, foi professor de muita gente boa, a começar por Baden Powell. Era um ser especial: por exemplo, uma vez ganhou uma caneta de ouro, toda bonita. Foi trabalhar. Voltou, a esposa, dona Elza, perguntou:
– Meira, cadê a caneta?
– Que caneta?
– A de ouro, que você ganhou ontem!
– Ah... Eu estava orientando alguém, uma pessoa pediu uma caneta, não vi direito, entreguei, ela deve ter esquecido de devolver...
– Meira, para quem? Uma caneta de ouro...
Outra situação comum era dar aula de graça.
– Meira, aquele rapaz não paga não?
– Não, ele está começando, não tem condições.
– E o violão que ele está usando?
– Pois é, ele, como disse, está começando, não tem condições, comprei um violãozinho pra ele...
– Meira, não quer fazer mais nada por ele não?
– Olha, se você puder fazer um lanchinho...
A vida da dona Elza não era fácil. Uma pessoa gentil, bondosa, não deve ser julgada pelo contraponto com a insanidade gentil do marido. Que chegava tarde, muito tarde...
– Meira, teu programa não acabou às 4?
– Acabou.
– São 10 horas, Meira.
– Ah, é. Mas sabe, depois do meu tem o programa do Jair de Taumaturgo, tem muito calouro, muitos não têm quem acompanhe, não têm violão, pode ser a oportunidade da vida deles...
Celso chegou lá por recomendação de seu colega da faculdade de medicina, Maurício Carrilho (nenhum dos dois virou médico, Celso é economista e Maurício, well, um dos maiores violonistas do país). Chegou, cumprimentos, Meira estava na varanda onde dava aula, Celso explicou suas pretensões, e ele, com o cigarrinho no canto da boca:
– Muito bom, o que você vai cantar?
Ele estranhou: será que me expressei mal? Queria tocar violão apenas. Resolveu explicar tudo de novo. O mestre acedeu, e repetiu:
– Muito bom, o que você vai cantar?
Estranheza, será que o professor tinha algum problema de audição? Explicou tudo de novo, e pela terceira vez:
– Muito bom, o que você vai cantar?
Ali desistiu de explicar, resolveu cantar mesmo. Cantou algo, Meira o acompanhou com a mestria de sempre. Disse:
– Muito bom. Agora eu começo e você canta de novo.
Tocou, mas em outro tom. Acabada a cantoria, marcaram dia e hora corretos em que as aulas ocorreriam. Anos depois Celso entendeu: fazia isso para checar se a pessoa tinha condições de aprender algo, se tinha algum ritmo, se percebia uma modulação. Não era o caso de cantar bem ou mal. Não tendo, ele diria que estava sem horário livre, mas que assim que houvesse uma chance o chamaria. Dessa forma não magoava ninguém, nem pegava dinheiro por uma aula que considerava inútil. Mais que um gênio, um homem bom.
Uma pausa nas histórias: Celso herdou um dos violões do mestre (Mauricio herdou o outro). Eram os alunos mais amigos, mais próximos, mas Celso, que não é profissional, nunca se conformou com essa posse, se considerava guardião do instrumento. Após 20 anos, resolveram o que fazer: doá-lo à casa do Choro e esta, por sua vez, nomearia um guardião para usá-lo e, em algum momento, passar adiante. O escolhido foi o violonista Iuri Bittar, por sua competência, talento e por ter feito sua dissertação de mestrado sobre Meira (o excelente trabalho pode ser baixado aqui). Aliás, nessa entrega, constrangeram sua filha Yvonne a cantar, acompanhada pelos violões do pai. É uma excelente cantora, que apesar dos apelos do pai, nunca se animou a ter uma carreira. Sempre que varria a casa, cantava lindamente, acompanhando a aula que o mestre dava. Um dia, este veio a ela e disse:
– Pronto, agora você vai ter como começar uma carreira de cantora!
E deu-lhe uma vassoura novinha.
Seu nome era Jaime Florêncio. Jaimeira era o apelido dado pelo irmão (ou pelo pai), virou Jameira, e em seguida, Meira. Seu parceiro Augusto Mesquita implicava com o sobrenome Florêncio. Uma dia sugeriu:
– Por que você não muda para Florence (“florrânce”)? Assim, numa carreira internacional, fica mais fácil pronunciar, um nome francês.
Concordou, mas para sempre ficou Florence, em português mesmo, e acabou imortalizado como Meira.
Um dia Celso chegou para a aula e havia uma senhora, uma linda menina com um cavaquinho e um garoto, pequeno, gordinho, com um violão.
– Professor, errei de horário?
– Não, ele vai participar da aula com a gente. Senta aí, toca o que estudamos semana passada.
– Mas ele estudou as mesmas coisas?
– Toca.
Tocou, e o moleque foi atrás. Meira o instigava a fazer variações, improvisos, e ele fazia, com extrema e sobrenatural competência. Passaram por todo o repertório de Celso, e este, maravilhado com aquela criança muito séria. Ao final, se despedindo, o mestre disse:
– O futuro ninguém sabe, mas você deverá ouvir falar muito dele, e vai gostar de ouvir. O nome dele é Raphael Rabello.
O filho de Celso se chama Rafael.
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