Na Ponta do Disco

Jards Macalé, 80 anos de uma voz, corpo e espírito livres

por Sheyla Diniz

sábado, 01 de abril de 2023

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"Comi rosas e as madames exclamaram: esse Macao é um artista genial!" ("Conto do Pintor", álbum Contrastes - 1977)


Muitas coisas merecem ser enaltecidas e destacadas na vida e obra de Jards Macalé (Jards Anet da Silva), considerando o período em que estudei sua obra (1969 a 1974). Acho que muitas questões merecem ser enaltecidas. 

Macalé é um músico de formação plural, tanto na chamada música erudita quanto na música popular. Ele foi aluno da ProArt do Rio de Janeiro nos anos 1960; estudou com violonistas do porte de Turíbio Santos e Jodacil Damaceno; estudou com Esther Scliar e (César) Guerra-Peixe. Ao mesmo tempo, ele constrói uma formação muito sólida na linguagem do samba e da bossa nova, nos anos 1960. 

A formação dele abarca ainda, nessa década, toda uma efervescência político-cultural de esquerda. Ele foi, por exemplo, violonista do show Opinião. Ele substituiu o primeiro violonista, Roberto Nascimento, justamente quando Maria Bethânia substituiu Nara Leão. O Opinião foi um espetáculo engajado daquela época, logo depois do golpe militar de 1964. 

Macalé esteve muito atento a toda essa movimentação e a todo um conjunto de valores, práticas e experiências da contracultura que vão culminando até chegar em 1967, no Tropicalismo. Macalé não é tropicalista, não participou diretamente, mas obviamente não passou incólume. Ele incorpora uma linguagem que vem do experimentalismo, procedimentos de vanguarda, rock, valores da contracultura. E isso encontra toda a bagagem que ele já traz de sua formação nos anos 1960. Vale lembrar que ele também foi copista da Orquestra Tabajara. 

A partir de 1969, Macalé vai ser parceiro de alguns dos tropicalistas, como por exemplo, de Capinan, letrista de “Gothan City”. É com essa canção que Macalé se apresenta no Festival Internacional da Canção (FIC, 1969) e causa um rebuliço – na esteira do que Caetano Veloso havia feito no festival anterior ao defender “É Proibido Proibir”. Com “Gotham City”, Macalé desestabilizou novamente aquele ambiente institucionalizado de festival. Na ocasião, ele estava acompanhado da banda Os Brazões e fez um happening, que tem a característica proposital de abranger o imprevisível.

A partir daí, Macalé começa a ser conhecido por um público mais vasto na cena artística, sobretudo no Rio de Janeiro. Em 1970, ele grava pela RGE um compacto com quatro canções: uma delas com letra de Duda Machado, duas com letras do Capinan e uma do próprio Macalé. Pouco depois, ele vai para Londres auxiliar Caetano (que estava exilado a mando do regime militar) nos arranjos e na direção musical do LP "Transa", que seria lançado no Brasil em 1972. Esse LP tem a marca muito presente do violão e dos arranjos de Macalé

Quando Macalé volta de Londres, ele lança seu primeiro LP, "Jards Macalé" (1972). Nesse disco há as presenças muito efetivas de Capinan e Waly Salomão. Waly se torna a partir daí um grande parceiro de Macalé: algumas de suas parcerias foram gravadas por Gal Costa no emblemático LP "FA-TAL" (1971). Assim como Macalé, Waly não participou do tropicalismo, mas comunga diretamente de toda aquela propagação de novas formas de se fazer arte, de romper com limites pré-fixados. No caso da canção, romper especialmente com os moldes da MPB engajada dos anos 1960. O disco "Jards Macalé" (1972) também conta com a parceria de outro grande letrista tropicalista, Torquato Neto (Let’s play that!), e marca a entrada de Macalé na gravadora multinacional Phonogram – da qual ele seria dispensado em 1974 por “inviabilidade comercial”. 

Outra questão que merece destaque é o protagonismo político e normalmente irreverente de Macalé. Ao lado do artista e seu amigo Xico Chaves, em dezembro de 1973, ele organizou o show "O Banquete dos Mendigos" no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, em plena ditadura, em pleno AI-5. A ideia inicial de Macalé era fazer um show em “autobenefício”, com o intuito de reverter sua má situação financeira e denunciar a situação dos músicos no Brasil. Macalé se dizia na “falência” e andava muito insatisfeito com a política que regia o repasse dos direitos autorais. Era também um período de hiato: ele já havia gravado o LP "Aprender a Nadar", cujo lançamento pela Phonogram só se daria no ano seguinte. O show em autobenefício, contudo, ganhou outra dimensão. O MAM projetava uma exposição para celebrar o 25.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em Paris, pela ONU, no pós-Segunda Guerra. Daí que a proposta de um show, aliado à exposição, veio a calhar. "O Banquete dos Mendigos" reuniu músicos emblemáticos e diversos: Raul Seixas e Grupo Soma (banda de Macalé no compacto de 1970), Jorge Mautner e Luiz Melodia, Johnny Alf e Dominguinhos, e, dentre outros, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Edu Lobo e Chico Buarque. 

Macalé – que diz ter continuado na “falência” – foi, então, responsável por esse acontecimento na cena musical e política do Rio de Janeiro. Além dos músicos, críticos do regime militar, o evento tinha o aval simbólico da ONU. Entre as canções, Ivan Junqueira – conhecido, entre outras coisas, por ser o tradutor do Baudelaire no Brasil – ia lendo os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em plena ditadura, em pleno governo Médici. Chega a ser hilário: toda canção e espetáculo no Brasil daquele período deveriam passar previamente pelo crivo da censura, que vetou alguns artigos da Declaração da ONU, lidos mesmo assim durante o show. Criou-se um ato público e político sob a vigilância de agentes da ditadura, que nada puderam fazer a não ser proibir o álbum "Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos" (RCA Victor, 1979). O disco registrado ao vivo – registro feito às escondidas – só seria liberado no final dos anos 1970, contexto marcado pela abertura política “lenta, gradual e segura”. Macalé, aliás, levaria o disco de presente para o ministro do governo Geisel, Golbery do Couto e Silva. A seu ver um ato estratégico – levar “direitos humanos” para o “artífice” da abertura –, a atitude lhe custou um arsenal de críticas por parte de setores da esquerda. A “patota” do Pasquim, no caso, prometeu rasgar "Aprender a Nadar".  

"Aprender a Nadar" (1974) condecorou Macalé entre os pares, os fãs e a crítica; deu mais visibilidade para o artista. O disco conta com instrumentistas como Dino Sete Cordas, Wagner Tiso, Robertinho Silva, Pedro Santos, Tutti Moreno, Luiz Alves, para citar alguns. É um disco de samba, de samba de gafieira, de boleros e samba-canção, mas não só. Macalé faz uma releitura da “canção de fossa”, da canção “dor de cotovelo”, da nossa herança romântica latino-americana. E faz a seu modo irônico e às vezes sarcástico, ao mesmo tempo prestando homenagem a esse repertório em grande medida ignorado pela MPB pré-tropicalista. Waly Salomão é uma espécie de coautor desse álbum que traz faixas experimentais e instrumentos incomuns como “chave” e “porta”. É de Waly a frase “A morbeza romântica que trazemos”, grafada na capa e contracapa. Neologismo, “morbeza” seria a soma de “morbidez e beleza”. Waly certamente inventou a palavra lendo o Manifesto da Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade, que diz: “Pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”. 

Eu poderia seguir comentando outros álbuns como "Contrastes" (1977), "Let’s Play That!" (1983), este em parceria com Naná Vasconcellos, ou "Jards Macalé canta Moreira da Silva" (2001), disco cuja intepretação de Macalé é carregada de teatralidade. A propósito, acho que Nelson Pereira dos Santos percebeu essa teatralidade de Macalé desde os anos 1970, quando o convida para assinar a trilha sonora e participar como ator em "Amuleto de Ogum" (1974), no papel do cego Firmino, e, depois, para encarnar o papel do jovem Pedro Arcanjo em "Tenda dos Milagres" (1977). Essas e outras participações em filmes compõem o mosaico de realizações desse artista tão inventivo que é Macalé

Mas, para ficar entre 1969 e 1974, período que eu estudei e que é marcado por uma intensa produção artística crítica sob a ditadura, embora alguns diagnósticos de época falassem num certo “vazio cultural”, seria injusto não destacar todos os discos então lançados por Macalé, além de sua participação efetiva no LP "Transa", de Caetano, e o seu protagonismo em ações políticas, bem como sua tentativa de forjar espaços de produção e circulação de música. Nesse sentido, entre o final de 1969 e o início de 1970, Macalé, Capinan, Paulinho da Viola e Gal Costa tiveram a ideia de criar uma agência, a “Tropicart”, para assim organizarem e gerenciarem seus espetáculos. A agência não foi para frente. Mas atesta justamente a iniciativa de Macalé de ser ele próprio o produtor de seus espetáculos. Até certo ponto, ele apontava para estratégias que, no fim dos anos 1970, seriam levadas adiante pelos chamados “músicos independentes”. Já havia essa tentativa e essa vontade de não depender de gravadoras.

Todos esses aspectos têm a ver com a persona de Macalé: músico atento ao seu tempo, com uma bagagem musical diversificada e com uma formação política que passa inclusive pelo anarquismo. Macalé conta que seu livro de cabeceira era "Ação Direta", de José Oiticica, líder anarquista dos protestos de 1917. José Oiticica era avô de ninguém menos que Hélio Oiticica. O diálogo cancional de Macalé com procedimentos vanguardistas não deixa de ser também resultado de seu convívio e amizade com Hélio, e com Lygia Clark, nos anos 1970.

Eu compreendo que Macalé e outros artistas, seus parceiros, seguem um caminho paralelo, e mais incerto, na medida em que o tropicalismo vai se tornando mais “hegemônico” – quando Gil e Caetano retornam do exílio e vão solidificando suas carreiras junto com Gal Costa, dando às suas carreiras um caráter mais comercial. Macalé e parceiros como Torquato Neto, Waly Salomão, Rogério Duarte, dentre outros, muitos deles chamados de malditos ou marginais, vão tensionar, esticar e sustentar uma “linha crítica” da canção brasileira, para fazer alusão à ideia de “linha evolutiva” atribuída a Caetano, ideia que povoava, todavia, com nuanças diferentes, os discursos e debates dos anos 1960. Para exemplificar o raciocínio de Caetano, registrado num debate publicado na Revista Civilização Brasileira (1966), a ideia era a seguinte: se nós temos uma tradição e queremos fazer algo novo dentro dela, temos que conhecê-la e senti-la. O tropicalismo buscou colocar em prática essa ideia quando, na canção, realiza uma crítica externa (contextual) e simultaneamente uma crítica interna à própria canção então feita no Brasil. É nesse sentido, que, para mim, Macalé e seus parceiros – para não falar de músicos como Walter Franco e o tropicalista Tom Zé – vão esticar e até mesmo radicalizar a linha dessa canção crítica, num momento em que o tropicalismo se dissipa como movimento e seus expoentes célebres se solidificam na indústria fonográfica. Não quero sugerir que Gil, Caetano e Gal abandonaram a perspectiva crítica, mas que o gerenciamento mais racionalizado de seus discos e carreiras permitiu alcançar um público consumidor bem maior.

Macalé foi um artista que fez menos concessões, acumulou causos inusitados e altos e baixos ao longo dos anos, ao mesmo tempo em que procurou espaços alternativos à grande indústria fonográfica, Macalé hoje já se dissipou daquela velha pecha de maldito. Além de sempre inovar ao reinterpretar suas próprias composições, Macalé segue concebendo uma canção política e experimental, a exemplo de seu álbum recente "Besta-Fera" (2019). Em 2021, tornou-se parceiro de João Donato em "Síntese do Lance", e, em breve, lançará mais um álbum, "Coração Bifurcado" (2023). Olhando em retrospectiva, Macalé, para mim, no âmbito da geração que o formou, é um dos músicos mais coerentes, mesmo em suas eventuais incoerências. Músico que nunca perdeu a veia crítica, tanto do ponto de vista social, contextual, quanto do ponto de vista da própria canção, no sentido de não se conformar com as fórmulas já testadas. Sua canção não é inofensiva, tampouco ingênua. 

Por último, e não menos importante, Macalé canta com o corpo. Sua voz é teatral, plástica, repleta de possibilidades e recursos. Melodramática, rouca, tem soluços, sussurros e pigarros. Ou, então, é dotada de agressividade performática, quando não sacana, malandra, irreverente. Mas pode ser bossa-novista à la João Gilberto, referência para toda uma geração e, naturalmente, para Macalé, que, como João, raramente sobe ao palco sem o seu instrumento. O violão de Macalé, muitas vezes dissonante e ruidoso para padrões convencionais, é constitutivo da corporeidade e da persona desse que é um músico brasileiro para além de quaisquer rótulos. A liberdade criativa da qual Jards Anet da Silva (ou da Selva?) nunca abriu mão está imantada no Brasil: para cantar o amor (princípio que os positivistas descartaram do lema estampado em nossa bandeira), para expressar na arte as nossas virtudes e mazelas de ontem e de hoje, e para enaltecer e reinventar o nosso imensurável legado musical. Eis aí algumas das grandes contribuições de Macalé!

Sobre o álbum "Banquete dos Mendigos", assista ao episódio Na Ponta do Disco #22 (aqui), com Sheyla Diniz sobre o álbum antológico de 1973 (mas só liberado em 1979) que faz 50 anos nesse ano.



Sheyla Diniz é doutora, pesquisadora e autora da tese:  “Desbundados e marginais : MPB e contracultura nos "anos de chumbo" (1969-1974)”. Atua nas áreas de Sociologia da Cultura, Música Popular e História social da canção. É autora do livro: ... De tudo que a gente sonhou: amigos e canções do Clube da Esquina (São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2017).


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