Colunista Convidado

Makely Ka desbrava sertões e veredas em seu “Rio aberto”

quinta, 30 de junho de 2022

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Da geração pós-Clube da Esquina, modernizadora das mineiridades, ao lado de Kristoff Silva, Maísa Moura, Pablo Castro, Alda Rezende, entre outros, o multifacetado Makely Ka desembarca novo projeto, “Rio aberto” (Kuarup). Trata-se do segundo capítulo musical da “Trilogia dos sertões”, iniciada em “Cavalo motor” (2014), resultado de impressões estéticas coletadas numa longa viagem de bicicleta pelo interior mineiro. O novo disco, disponível em formato físico e digital, é resultado de dois outros percursos simultâneos. Um deles, pelo Vale do Urucuia, no nordeste do estado de Minas Gerais. E o outro, por um instrumento de sonoridade pouco explorado pela corrente principal da MPB, a viola de dez cordas.

“Toco nesse álbum com uma ‘violinha de bigode’, construída em cedro brasileiro pelo luthier Wagner França, de Jaboticubas, em 2012, e uma viola modelo clássico, construída em jacarandá e cedro pelo luthier Lúcio Jacob, de Viçosa, em 2020”, documenta ele. “Viola dinâmica com cinco pares de cordas: a estrutura do corpo é semelhante a de um violão, mas ela possui um ressonador metálico, que projeta o som através de pequenas bocas dispostas no tampo. Foi muito utilizada pelos repentistas e cantadores nas feiras populares no nordeste”, relata.

Em sua imersão interiorana, Makely aprendeu com os violeiros locais afinações como a “rio abaixo”, também chamada de “sol aberto”, que inspirou o título do álbum, “Rio aberto”. Suas 12 faixas autorais (além de “Encontro das águas”, de Tavinho Moura, integrante mais folk do Clube da Esquina) remetem a cursos d’água e rios, que irrigam arte e história do país. Dos grandes sertões literários de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha ao fabulário do compositor baiano Elomar Figueira de Melo e a devastação das águas poluídas pelos desastres da mineração.

Foto de Rosa Antuña 

Nascido na antiga cidade de Valença do Piauí, onde havia uma aldeia dos indígenas Aroazes, Makely Oliveira Soares Gomes, mestiço de negro, índio, árabe e português, aos três anos, foi morar em Barão de Cocais, no interior de Minas, onde começou a interessar-se por música ouvindo os aboios dos vaqueiros. Um tio materno o ensinou os primeiros acordes de violão e apresentou-lhe das histórias em quadrinhos a textos de Nietzsche e Freud. Em Belo Horizonte, aos 15 anos, cursou Eletrônica Industrial e trabalhou na mineradora Vale, em automação industrial e telecomunicações. Depois, estudou Filosofia, participou do circuito alternativo de poesia, teatro e performance, além de montar uma rádio alternativa na cidade de Ouro Preto, onde também militou na política estudantil. Antes da música, debutou no “Objeto livro” com uma seleção de poemas, em 1998. Gravou o primeiro disco, um coletivo, “A outra cidade”, de 2002, que liderou ao lado de Kristoff Silva e Pablo Castro, com participação de dezenas de novos nomes da música mineira. O segundo livro de poemas, “Ego Ecêntrico” sairia em 2003 e, três anos depois, ele lançava com Maísa Moura o álbum autoral “Danaíde”. Em 2008, perpetra o primeiro disco solo, “Autófago”, com embalo roqueiro e ritmos nordestinos, entremeados por transcrições do cineasta Glauber Rocha, do Sub-Comandante Marcos, porta voz do movimento zapatista mexicano, e do poeta russo Maiakovski.   

A bordo de uma carreira consolidada, gravado por interpretes como Lô Borges (com quem dividiu o disco “Dínamo”, em 2020), Samuel Rosa, Ná Ozzetti, José Miguel Wisnik, Carol Saboya, Aline Calixto, Regina Souza, Titane, Paula Santoro, Julia Ribas, ele compôs em 2014 a “Suíte onírica”, com Rafael Martini, peça sinfônica de cinco movimentos. Parceiro, entre outros de André Mehmari, Estrela Leminski, Chico Saraiva, Flavio Renegado, Leoni, Mário Seve, Kiko Klaus, Chico Amaral, Marku Ribas, Natan Marques e Flávio Henrique, MK assinou as letras de “Canções para voz e quarteto de cordas” musicadas por Kristoff Silva e, em 2012, realizou a expedição “Cavalo Motor pelo Grande Sertão”. Percorreu de bicicleta os caminhos do personagem Riobaldo, do romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, que registrou em áudio, vídeo, fotos e disco”. 

Lastreado na tradição popular violeira, lapidada por ases como Renato Andrade, Manoel de Oliveira, Heraldo do Monte, Tavinho Moura e Paulo Freire, com abertura a procedimentos vanguardistas como a microtonalidade, pesquisa de timbres e polirritmia, “Rio aberto” tem o mesmo tipo de imersão. Ele é traduzido preferencialmente pelo retinir da viola, com eventuais escoltas de cello (Felipe José), baixo acústico (Rodrigo Quintela, Paulim Sartori), violão de nylon (Gustavo Souza) e arranjos de cordas de Avelar Jr. A faixa “Rio do Sono”, com dedilhados violeiros em cascata, evoca o local onde ocorreu a batalha entre o bando dos Hermógenes e os Ramiro, comandados por Riobaldo, no supra citado romance de Guimarães Rosa. Preste atenção nos ponteios da viola solitária de Makely em “Paracatu”, o curso d’água onde desagua o anterior Rio do Sono”. Por sua vez, “Vaza barris”, aberta por acordes compassados e sequencias encachoeiradas de violão e viola, descreve o rio que banha Canudos, a mítica cidade baiana das batalhas de “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Bordadas pela craviola de 12 cordas empunhada por Makely, as densas ondulações de ‘Doce” emulam o rio chamado pelos indígenas Krenak de “Watu”, invadido, em 2015 pelos dejetos do rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, na região de Mariana. Os tons graves de “Paraopeba” sinalizam outra tragédia, a da barragem de Brumadinho, da Vale, que atingiu a parte baixa da aldeia indígena de Naô Xohã, em 2019.

Há encenações menos trágicas, no pacato “Das Velhas”, pontuado pela profundidade do baixo acústico, “Batistério”, acamado pelas cordas do cello, no entoado “Verde grande”, e no diálogo das violas dinâmica e slide do solista, em “Pardo”. “O ouvinte mais desavisado precisará focar sua audição para perceber que detrás de uma prosódia quase constante, descortina-se um universo de toques, ideias rítmico melódicas, amparadas por caminhos harmônicos novos”, disseca, no texto de apresentação, o virtuose da viola Ivan Vilela, outra das influencias confessas de Makely. Vilela desvela que a recorrência de “Rio aberto”, “evoca mais a ideia do espelho d’água do rio, que na sua serenidade, guarda um ‘sem fim’ de movimentos dentro de seu leito”. Um convite ao mergulho nessas águas sertanejas nada rasteiras ou redundantes.


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