Manguebeat: da decadência do Recife à Ebulição Cultural que mexeu com o Brasil
Pode-se atribuir à decadência do mercado musical no Recife, entre meados dos anos 70, a toda década de 80, a dois fatores básicos: o inicio da programação de TV em rede nacional, e o início da crise da Fábrica de Discos Rozenblit. A transmissão de programas via satélite levou às duas emissoras pernambucanas, TV Radio Clube, e TV Jornal do Commercio, a encerrarem boa parte dos programas locais, pelo menos metade da grade, compartilhada com o que chegava do Sudeste em videotape. As TVs locais passaram a retransmissoras de estações do Rio ou São Paulo. Assim foi inevitável as demissões de artistas, técnicos, apresentadores, músicos e afins.
Surgida em 1953, lançando o primeiro disco de frevo gravado em Pernambuco, a Rozenblit inauguraria em 1954 seu complexo industrial, estúdio, gráfica e fábrica de discos. A empresa localizava-se na Estrada dos Remédios, no bairro de Afogados, lugar vulnerável às inundações periódicas do Rio Capibaribe, que foram tornando-se mais volumosas à medida que aumentava o desmatamento das suas margens no interior do estado. A maior das inundações aconteceu em 1975. As águas cobriram o maquinário, os estúdios, o parque gráfico. Agravando as dificuldades da gravadora dos irmãos Rozenblit, que ainda sofreria mais uma inundação em 1977. Atolada em lama e dívidas, a empresa se arrastaria em crises até meados dos anos 80, quando fechou as portas definitivamente.
Os artistas da música em Pernambuco, devido a precariedade do mercado, ou optaram por continuar a carreira no Rio ou São Paulo, ou permaneceram, entre o Recife e Olinda participando de festivais ou eventos promovidos por órgãos oficiais, apresentados, a maioria das vezes para pequenas plateias. Não lhes faltavam talento, mas espaço. Os intérpretes ou grupos que vinham de fora mostravam um profissionalismo, e equipamentos, que contrastavam com o que era levado aos palcos pelos artistas da terra. Lenine, que deu os primeiros passos, no final da década de 70, lembra que soava até depreciativo se dizer artista no Recife da época. Nomes destacados como o próprio Lenine, o cantor Geraldo Maia, o cantor e compositor Lula Queiroga, e outros se mudaram para o Rio.
No final dos anos 80, a cena musical do Recife tornara-se pulsante no rock and roll, com um viés para a corrente punk, hardcore, heavy metal. Surgiu também, na periferia, uma cena hip hop, com grupos de breakdance, que se exibiam no Centro da cidade, ou em parques, como o 13 de maio, área central da capital. Em Rio Doce e Casa Caiada, em Olinda, e em Candeias, bairro de praia, de Jaboatão dos Guararapes formaram-se bandas de punk rock. Este pessoal acabariam se encontrando, e passando a fazer música juntos, impulsionados mais pelo desejo de movimentar a cidade, do que por afinidades estéticas.
No final dos anos 80, Francisco (futuro Chico Science) promoveu a A Primeira Festa Hip Hop do Recife, com show de sua banda da época, a Orla Orbe. Foto e áudio do acervo pessoal do DJ Elcy (Elcy Oliveira)
Por outro lado, o rock inglês entrava em mais uma onda com bandas feito Bauhaus, The Smiths, The Cure, Joy Division, depois New Order. O fim da ditadura militar atraiu novos ventos e eventos ao país. Um dos mais fortes foi o Rock in Rio, em 1985, pequenas gravadoras como a Stiletto e a Tinitus. A primeira lançou por aqui discos de bandas pós-punk e indie inglesas. O segundo, do produtor Pena Schmidt, gravou bandas inovadoras como a Yo-Ho Delic, Karnak, Virna Lisi. No Recife, um bando de universitários conseguiu descolar um programa da rádio Universitária FM chamado Décadas, em que tocavam o que as rádios convencionais ignoravam. Entre os que o redigiam e apresentavam estavam Fred Montenegro e Renato Lins, ambos estudantes de jornalismo da UFPE. Este pessoal passou a se reunir em apartamentos da Rua da Aurora, Centro do Recife, onde viviam Hélder Vasconcelos, o futuro DJ Dolores, Xico Sá, também do jornalismo da UFPE. Um dia apareceu no estúdio da rádio, sobraçando alguns LP um rapaz chamado Francisco França. Que foi admitido na turma, e traria consigo um amigo do break, Jorge du Peixe, outro olindense.
Chico França, ou Chico Science, apelido que lhe dariam na nova turma (viria de um tio de Renato Lins, dado a invenções), morava em Olinda, no bairro de Rio Doce, num conjunto habitacional. No vizinho bairro de Casa Caiada, onde moravam o guitarrista Lúcio Maia, e o baixista Alexandre Dengue. Conheceram-se em encontro musicais em Rio Doce, onde Chico integrava uma banda pop, a Orla Orbe, que seguia a linha do Paralamas do Sucesso e de bandas do Brock.
A TEORIA DO CAOS
Um emprego na empresa de informática da prefeitura, a Emprel, mudaria o rumo da vida de Chico Science. Os mangueboys adeptos da teoria do caos, foram protagonistas dela na prática. Um colega de trabalho, Gilmar Correa descobriu a inclinação de Chico pela música e lhe contou que participava de um grupo de samba-reggae, afoxé, ijexá (os dois últimos ritmos fazem parte da pletora musical pernambucana, sobretudo de Olinda). O grupo era o Lamento Negro que saía no carnaval olindense, e começava a se tornar conhecido além dos limites da folia de Momo.
Chico Science não era alheio à cultura popular. Morando na periferia de Olinda, ele conhecia cirandas, acorda povo (um brinquedo junino), cavalo marinho, maracatu de baques solto e virado, caboclinho, emboladores e coquistas. Ele se identificou com a música do Lamento Negro quando o viu, na ONG Daruê Malungo, em Chão de Estrelas, localidade em a os limites entre o Recife e Olinda torna-se difuso. A maioria dos integrantes do Lamento Negro morava na região, boa parte em Peixinhos, Olinda, um bairro muito rico em manifestações culturais.
Foto histórica do Miranda junto com a banda Mundo Livre S/A assinando contrato / Foto: Breno Laprovitera (23/11/94)
“Fiquei impressionado com a energia do Lamento Negro, e resolvi experimentar minhas influências de rock, soul, funk e hip hop com o potencial dos percussionistas fazendo uma fusão com os ritmos regionais”, esclareceu Science em entrevista ao Marcelo Pereira, editor do caderno de cultura, do Jornal do Commercio, do Recife (publicada em 3 de julho de 1993). Chico precisou insistir para que Lúcio Maia e Alexandre Dengue o acompanhassem a um ensaio do Lamento Negro. Na época eles formavam um grupo chamado Loustal. Aos poucos o rock foi se integrando com o batuque da Lamento Negro. Passaram a se apresentar como grupos diferentes, tocando juntos no palco em algumas músicas. Logo se fundiam em uma única banda, a Chico Science & Nação Zumbi.
Em 1992, Fred 04 (o “04” vinha da RG dele) tinha distribuído o manifesto Mangue, como aquela movimentação foi rotulada (originalmente era “bit”). Assumiam-se, mesmo que meio na ironia, como movimento. Fred fizera uma matéria sobre os mangues que circundam a região metropolitana, e usou trecho dessa matéria no manifesto. Tratava-se na verdade de uma movimentação, que motivou um despertar da criatividade nos pernambucanos. Por esta época, no Grande Recife já se podia constatar uma cena musical efervescente, com grupos surgidos na trilha da CSNZ e Mundo Livre S/A, e outros que remontavam aos anos 80, a exemplo da Devotos do Ódio (depois só Devotos), e Eddie. Em 1993, a primeira edição do Abril Pro Rock, no Circo Maluco Beleza, avalizava a nova música pernambucana. Foi realizado apenas com artistas da Região Metropolitana, e atraiu um público relativamente grande para eventos com artistas paroquiais.
A partir da primeira matéria sobre o movimento publicada no Sudeste, na revista Bizz. O segundo Abril Pro Rock atraiu não apenas um publico absolutamente maior, como a imprensa do Rio, São Paulo e outros estados, e bandas que começavam a montar o mapa musical do Brasil nos anos 90. Unindo trabalho com diversão, os mangueboys (foram poucas as manguegirls) desobstruíram as veias entupidas da cultura pernambucana. Com a música vieram a literatura, o cinema, teatro ou a moda. O Recife respirava os eflúvios dos mangues, também disseminados pelo país. Com Da Lama ao Caos, Chico Science & Nação Zumbi, em 1994, iniciou uma série de discos de pernambucanos nos anos 90: Mundo Livre S/A, Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis, Mestre Ambrosio, Coração Tribal, Querosene Jacaré, Comadre Florzinha (a única banda feminina da cena) lançaram discos por gravadoras do Rio ou São Paulo.
Não tinha mais volta, a máquina fora ligada e não parou mesmo com a precoce e acidental morte de Chico Science, em 2 de fevereiro de 1997. 25 anos sem Chico, mas os sons dos caranguejos com cérebro continuam a ecoar por Pernambuco, pelo país, e pelo mundo. Encontram-se alfaias (tambores de maracatu) na Europa, nos EUA. Há maracatus em Nova Iorque ou na Escócia. “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”, cantou Chico em Um Passeio Pelo Mundo Livre (Afrociberdelia, 1995). Foi este passo à frente que mudou a cara da capital pernambucana, e contribuiria para formatar o rock brasileiro da década de 90.
José Teles, autor de Do Frevo ao Manguebeat (2000, Editora 34), Da Lama ao Caos – Que Som É Este Que Vem de Pernambucano (2019, Edições SESC SP), co-roteirista do doc Chico Science – Um Caranguejo Elétrico, de Zé Miglioli (2016)
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