Historicizando as canções

Marcondes Falcão Maia, o trovador da fuleragem

terça, 27 de dezembro de 2022

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Marcondes Falcão Maia, conhecido simplesmente como Falcão, nasceu na cidade de Pereiro, interior do Ceará, em 16 de setembro de 1957. Lugar onde viveu sua infância, o próprio afirma que não tinha eletricidade e seu pai era o único na cidade com uma radiola, onde ouvia artistas como o inigualável Waldick Soriano, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, entre outros. Na década de 1970, nos chamados “anos de chumbo” da ditadura civil-militar, Falcão se muda para Fortaleza e começa a estudar no colégio Júlia Jorge, no bairro da Parquelândia, foi nesse período que conheceu Tarcísio Matos, seu futuro parceiro nas composições. Em entrevista Falcão afirma que quando tinha 15-16 anos era autodidata no aprendizado do violão, junto com os irmãos.

Muitos não sabem ou até mesmo esquecem que Falcão é formado em Arquitetura pela Universidade Federal do Ceará, foi nessa época de estudante universitário que ele ficou próximo de Tarcísio Matos.

Foto: Eugênio Goulart 

Contudo, foi em 1988 que podemos cravar a origem do ícone que conhecemos hoje, nesse ano ele se apresentou no Festival da Canção Bancária, no BNB Clube, se inscreveu junto com Tarcísio, que era bancário, foi nesse evento que ele se vestiu já de maneira espalhafatosa, por recomendação de alguém da banda. Falcão se apresentou cantando algum bolero “brega”, não foi possível achar a informação do que foi cantado ao certo, e causou alvoroço, pois todos os outros participantes cantavam coisas sérias e ele foi se apresentou de forma toda “marmotosa”, como se fala no Ceará. Levou zero de todo o júri, mas a plateia adorou e não concordou com a escolha dos jurados e o nosso trovador precisou voltar para fazer uma apresentação de encerramento. A partir disso ele ficou um pouco conhecido na cidade  e começou a fazer shows, o resto, o leitor já deve saber.

Em 1991, lança seu primeiro disco, "Bonito, Lindo e Joiado", é nesse disco que Falcão canta a versão em inglês de Eu não sou cachorro, não, de Waldick Soriano, em entrevista ao programa Provocações, de Antônio Abujamra, em 2014, afirma que quando a rádio FM chegou no Brasil só tocava música em inglês e resolveu fazer a versão na esperança que assim as pessoas ouvissem a música do Waldick Soriano, uma grande provocação com a dominação cultural oriunda dos Estados Unidos, além disso, muita gente acha certas músicas bonitas simplesmente por serem em inglês e outra parcela dessas mesmas pessoas nem sequer sabe o idioma, a provocação de Falcão continua valendo para hoje.

“I'm not dog no, for live so humble
I'm not dog no, for you be so very far
You don't know understand who is love, who is like
You just know get it mistake
And so there I go away”

No mesmo disco temos a faixa Canto bregoriano, uma alusão ao canto gregoriano, um canto litúrgico da Igreja Católica.

“Se me tornei um pecador
E não segui a sua lei
Não rogai por mim, senhor
Como manda o versículo 16
Tomai, comei, disse o senhor
Mas o senhor há de notar
Que na circunstância em que eu estou
Rerum Novarum é de lascar[...]
Populorium progresso
Diz o ditado japonês
Tudo o que eu tenho eu devo a ti
Dizia Machado de Assis
Veronia secula seculorum
Vivi nesta exploração
Para o patrão prolabore
E na patena vai o pão”

Rerum Novarum foi uma encíclica escrita pelo Papa Leão XIII, sobre a situação dos operários no século 19, Falcão articula referências historiográficas junto com humor, criando uma teor de crítica no subtexto. Mostrando que mesmo para fazer fuleragem é preciso ter um arcabouço intelectual. Fuleragem é algo sério.

“Não sei se foi o Voltaire
Ou foi um bodegueiro que disse
Que o mundo não se acaba
Quando se ganha um par de chifre”

A figura do trovador remonta à lírica grega, é um poeta, mas não só escreve como canta suas poesias, principalmente sobre heróis e seus grandes feitos. Contudo, na Idade Média, naquele contexto das cortes o trovador começa a versar sobre temas mais subjetivos, e hoje essas cantigas são classificadas como de amor, de amigo e escárnio e maldizer, e é nessa última categoria que podemos encaixar Falcão.

As cantigas de escárnio eram feitas para satirizar alguma pessoa, porém a vítima nunca era nomeada e não possuíam termos de baixo nível.

“Você não faria a menor falta
Num dia de domingo no Beach Park
Eu não te levaria nem morta
A passear comigo no Iguatemi
Eu não me atreveria a passar vexame
Perante os meus amigos lá da Aldeota
Pois agora eu tenho o maior respaldo
Nas altas paneladas da alta sociedade”

Entretanto, as cantigas de maldizer são usadas palavras chulas, palavras com teor sexual e dirigem nominalmente a vítima do canto.

“Uma blitz me parou
Quiz engrossar
E antes que eu pudesse argumentar
Um sargento falou para um soldado
Multa, esse fela da puta, multa
Esse fela da puta, multa que é para moralizar
Multa, esse fela da puta, multa
Esse fela da puta, multa que é para moralizar
Mas seu guarda eu to desiludido
Minha mulher fugiu com um amigo
Me deixando com o crânio enfeitado
Ele então disse esse é mais um motivo
Pois aquí no código tem um artigo
Que diz que corno paga dobrado”

Escárnio e maldizer tem de sobra na obra de Marcondes Falcão, por isso não é de todo errado chamá-lo de trovador, no caso, trovador da fuleragem. Fuleragem é um termo bastante usado no Ceará, pode ser usado para se referir a algo que possui pouca ou nenhuma seriedade, algo muito jocoso, ou qualificar algo como de baixa qualidade, um produto fulero. Contudo, apesar da fuleragem, é evidente as referências usadas nas letras de Falcão e seu humor ácido com bastante crítica

Uma das figuras mais usadas em suas músicas é o corno, que sempre foi motivo de piada em nossa sociedade, reflexo da nossa sociedade machista, já que a traição da mulher é lida como incompetência por parte do homem de suprir as necessidades da mulher, sejam as materiais ou sexuais. O Falcão subverte esse lugar de vergonha que o corno é posto, sempre tratando de maneira descontraída e mostrando que o mundo não se acaba por causa de um “par de chifres”.

“Quando eu saí do sanatório,
era pleno mês de agosto
E pra aumentar o meu desgosto
ela com outro me traiu”

Outra característica da obra falconética é a catilogência, qualidade de quem tem alto nível de categoria, lógico e inteligência. E tudo isso o homenageado de hoje tem!

Foto: Reprodução/Globo

Falcão possui ao todo 8 discos, sendo que a metade foi produzida por Raimundo Fagner e Robertinho Recife, entre 1994 e 1998.

Falcão é conhecido nacionalmente por ser brega, graças ao seu visual colorido, o óculos escuro e girassol são suas marcas registradas. Além disso, o rapaz de Pereiro nunca escondeu ser fã de Waldick Soriano e outros artistas que são chamados de brega, como Genival Santos e Carlos Alexandre, tanto que em 1999 ele lançou o disco "500 anos de chifre - O Brega do Brega", onde regravou clássicos como Se meu amor não chegar, Arma de Vingança e Coração de Plástico. Falcão não faz simplesmente uma paródia dos artistas chamados de cafonas e bregas, ele faz piada ao mesmo tempo que mostra o respeito que tem por esses artistas que são adorados por várias pessoas do Brasil, apesar do preconceito e da tentativa de apagamento que a elite intelectual propaga contra os gostos da classe mais pobre do país.

Falcão nos mostra que o humor é coisa séria, é preciso ter muita catilogência para unir várias referências culturais com sons agradáveis e com isso arrancar risadas e até questionamentos de outros. O humor merece ser respeitado como uma coisa séria, fazer fuleragem é trabalhoso e é digno de nota.

“Talvez seja melhor calar
Porque falando é meio caminho andado
Por outro lado, eu fiz um estudo
E sei que é melhor falar besteira do que ser mudo
E sendo eu um grande entendido no assunto
Eu paro e vejo como tem gente besta no mundo”



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