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Martinha, a primeira compositora de rock famosa no Brasil

domingo, 10 de janeiro de 2021

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A composição é um espaço de imersão intimamente ligada ao viver. Quando se trata de mulheres que criam, reforçando temas femininos, temos a música assumindo o compromisso de fazer política, ultrapassando as fronteiras de gêneros e mostrando que o subalterno pode falar em um mercado dominado por um conservadorismo machista. Por séculos, criar não era para elas. Até que, depois de fenômenos como Chiquinha Gonzaga, Maysa e Dolores Duran, os anos 1960 começaram a abrir espaço para essas artistas. Uma delas foi Martinha, primeira cantora a se destacar no rock brasileiro como compositora, mais especificamente no programa Jovem Guarda, que marcou a explosão da segunda onda do ritmo no Brasil, ditando moda e inspirando outras mulheres. 

Foto: Reprodução 

A pianista mineira nasceu Martha Vieira Figueiredo Cunha a 30 de junho de 1947. Ela era amiga de Milton Nascimento, Tavito, Wagner Tiso e dos irmãos Márcio e Lô Borges, e se reunia constantemente com eles para conversar e discutir o que era melhor, a bossa nova ou o rock. Martinha gostava mais da turma de Roberto Carlos, cantor, compositor e um dos apresentadores do programa Jovem Guarda, da TV Record. Gostava tanto que, quando o ídolo foi à capital de Minas Gerais, em 1966, ela deu um jeito de encontrar com ele para mostrar que também era uma “garota papo firme” como a da canção “É papo firme”, de Renato Corrêa e Donaldson Gonçalves, gravada no álbum "Roberto Carlos" (1966). Martinha relembra:

“Falamos pelo telefone da recepção do hotel e ele prometeu ir na minha casa com o divulgador. Depois das três da manhã, ouvi o barulho de um carro e minha mãe me chamou, dizendo que eles estavam na porta. Não acreditei. Roberto, lindo, dentro da minha humilde residência. Falei para ele que gostaria de cantar, toquei violão e cantei algumas músicas que não eram minhas, porque até ali eu não compunha. Quando terminei, ele disse que minha voz não era a mais bonita que ele havia escutado, mas a mais diferente. Ele, então, falou para minha mãe que estava precisando de uma voz nova no Jovem Guarda e perguntou se poderíamos ir a São Paulo para conversar com a produção do programa.”

Roberto sentia que faltava, no rock brasileiro, composições que trouxessem aos repertórios um toque feminino. Talvez esse cuidado nem fosse consciente, mas o moveu a gravar canções de autoria feminina ao longo de sua história. De Martinha, ele registrou em 1967 “Eu daria a minha vida” em um compacto simples que trazia no lado 2 “Fiquei tão triste”, de Helena dos Santos. A música de Martinha entrou em uma coletânea de sucessos da gravadora CBS e ficou conhecida nacionalmente na voz de Roberto – ao longo dos anos, ela seria regravada muitas vezes, também em outras línguas. Apadrinhada pelo ícone do rock e apelidada por ele de Queijinho de Minas, Martinha gravou, em 1967, seu primeiro LP,  “Eu te amo mesmo assim”, com sete composições próprias em um repertório de 12 faixas. A faixa título estourou, colocou Martinha em primeiro lugar nas paradas de sucesso durante um ano, rendeu prêmios para a artista e alavancou sua carreira. A cantautora passou a fazer parte do elenco fixo do Jovem Guarda em 1966 e, com sua minissaia, a influenciar as espectadoras. 


Martinha e sua carreira foram sempre acompanhadas por sua mãe, Ruth Vieira Figueiredo Cunha. Hoje com 95 anos, Dona Ruth tem ótima memória de tudo o que as duas viveram e lembra que, quando vivo, o pai de Martinha –advogado, violonista e boêmio – não a proibia de cantar nos saraus domésticos, mas preferia que a voz da esposa ficasse apenas dentro de casa: Ruth ia cantar na Rádio Guarani, de Belo Horizonte, escondida do marido. “Não sei se meu pai impediria minha carreira, porque ele tinha uma mente aberta, mas homem sempre segura um pouco”, diz Martinha. Ele morreu quando a cantora tinha seis anos. Foi por motivo parecido que Martinha acabou não conseguindo manter nenhum dos seus três casamentos. 

“Eu nem pensava em casar, mas acabei me casando três vezes. Não gosto de casamento. O primeiro foi o Paulo César, mas eu não era apaixonada, não devia ter casado. Casamos em 1970 com a Igreja Nossa Senhora do Brasil cheia, cobertura do Jornal Nacional, e durou onze meses. Você me pergunta se ele casou para me segurar? Antes, eu achava que não, mas depois vi que foi, sim. Ele não assumia, mas era competitivo. Um dia, fugi da minha própria casa, que eu comprei com meu dinheiro. Fizemos o desquite e, anos depois, o meu foi o décimo-quinto divórcio do Brasil”, recorda Martinha. No final da década de 1970, a cantautora teve dois filhos, Fernando e Luciano, com dois homens diferentes, um deles o maestro Miguel Briamonte, com quem passou um tempo. Nos anos 1980, casou-se novamente, com o Luís Carlos. Transgressora se pensarmos que a imagem das cantoras da Jovem Guarda foi forjada para se mostrar comportada, mas Martinha tinha uma mídia que a tratava como a boa moça romântica. 

Martinha não seguiu carreira como roqueira. Do segundo movimento de rock brasileiro, no qual ganhou espaço com suas baladas, ela foi se firmando cada vez mais como uma cantautora romântica, respeitada como pianista e autora de belas letras e melodias. Se lembrarmos os contornos menos pueris que o rock tomou ao longo dos anos, seu comportamento não foi nada demais se comparado ao de outras artistas. Vanusa, por exemplo, apareceu muitas vezes no noticiário por causa das brigas com Antônio Marcos, que foi tendo cada vez mais problemas com o álcool, até sua morte, em 1992. No ano em que Martinha se casou pela primeira vez, Rita Lee já estava indo para seu terceiro álbum com sua banda, Mutantes, e posando na contracapa com os irmãos Dias Baptista, Arnaldo (seu namorado) e Sérgio, todos nus na mesma cama de casal, cobertos por um lençol. 

"Eu te amo mesmo assim", o primeiro LP de Martinha (Foto: Reprodução)

“As separações saíram em revistas, mas só como notícia. Eu sempre fui muito respeitada pela impresa. E, graças a Deus, não fiquei em um relacionamento por medo do que iam pensar. Sendo muito sincera, os casamentos foram uma chatice. Qualquer música que eu fizesse, tinha que ouvir: ‘Está fazendo essa música para quem?’ Não podiam achar que era para eles? Todos eles sabiam como era a minha vida antes de me casar, depois tudo virava ao contrário. Fui ficando meio tolida e compondo menos. Por isso que não aguentei casamento. Eles não admitem que a mulher esteja no poder”, conta ela. 

As fugas fizeram Martinha acumular quase 30 álbuns, que reúnem compactos, coletâneas, projetos especiais e 11 discos de carreira e ultrapassaram a marca dos três milhões de discos vendidos. Em todos eles, a maioria das faixas são autorais. De 1967 a 1972, ela lançou álbuns anualmente pela Copacabana. Em 1974, ela gravou um pela Continental, e ficou sem gravadora até 1986, quando assinou com a 3M e lançou discos até 1986. A não ser pelo próprio Roberto Carlos, as caras da Jovem Guarda foram sumindo da mídia e do mercado e dando espaço a novos nomes do rock na década de 1980. Martinha aproveitou essa baixa do mercado para trabalhar nos Estados Unidos, na Espanha, na Itália e na Venezuela, e chegou a ganhar prêmios em alguns desses lugares, além de ter popularizado alguns de seus sucessos em espanhol. Na Espanha, Martinha chegou a morar por dois anos: “Fiz as versões para o primeiro disco em português do Julio Iglesias. E fui entrando no país com minha música. Assim como aconteceu no Brasil, entrei pelo mérito da compositora, pesando mais do que o da cantora.” 

A cantautora define seu estilo como “romântico”, e atribui isso à formação de pianista clássica, às noções de harmonia que aprendeu. O violão lhe inspira, mas é no piano que saem suas melhores canções. Foi o romantismo em suas composições que fez com que Martinha conseguisse se reinventar e virar uma fornecedora de composições para artistas do segmento sertanejo e da MPB: “Mudei de Belo Horizonte para São Paulo com cinco canções, no máximo. Hoje, tenho mais de 200 gravadas por mim e por artistas como Erasmo Carlos, Ronnie Von, Fafá de Belém, Beth Guzo, Agnaldo Timóteo, Agnaldo Rayol, Chitãozinho & Xororó, Christian & Ralf e vários outros”


A partir dos anos 1990, Martinha não gravou mais como cantora. Depois que teve um problema na garganta, a cantautora tem se sentido cada dia mais nostálgica. “De uns cinco anos para cá, escuto música minha antiga e fico tocada”, afirma: “Nesse momento em que estava com problema na garganta, gravei recitando, com o piano do pai do Luciano ao fundo, a composição que fiz para meus pais, ‘Sendo filha de quem sou’. Eu chorei na gravação e, quando ouço, não aguento e choro de novo”. A letra é uma declaração de amor ao pai boêmio, com quem ela pouco conviveu, e à mãe que amou, ensinou, incentivou, protegeu e acompanhou Martinha por toda a sua vida. A canção recitada começa assim: “Sendo filha de quem sou / Sempre soube quem seria / De minha mãe, trago a coragem/ De meu pai, a boemia / Dele eu guardo uma saudade / Dela eu tenho acompanhia / E se a vida assim não fosse / Que caminho eu seguiria?”

E se não fosse o rock abrir as portas, qual caminho Martinha seguiria?

Chris Fuscaldo

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