Amigo ao Peito

Meu Amigo Jodacil

quinta, 28 de dezembro de 2017

Compartilhar:

Meu amigo Jodacil morreu. Éramos amigos improváveis, pela diferença de idade, mas nos 11 anos que durou, foi uma amizade de telefonemas dia-sim-dia-não, de troca de impressões sobre tudo, de um imenso aprendizado para mim. 

Meu amigo Jodacil Damaceno nasceu em 1929, no interior do estado do Rio. Com 14 anos perdeu a mãe, e como já era “grande”, veio para a capital trabalhar. Foi morar numa pensão, com seu parco salário se sustentava e pagava sua instrução. Era balconista de botequim. Excelente, aliás, era cobiçado pelos outros bares e por um salão de cabeleireiro da vizinhança (Avenida Oswaldo Cruz, no Flamengo). Se manteve no bar, aprendeu datilografia, foi trabalhar num escritório de navegação. Começou a namorar sua eterna Ignez e, para ficar mais tempo com ela, foi aprender acordeão. Descobriu que seu professor, Freitas, também lecionava violão, sua paixão. 

Meu amigo Jodacil conheceu o violão por conta de um namorado de uma tia, um cidadão que o tocava. Música, só quando o circo passava. Já no Rio comprou um instrumento de meia com um amigo, a grana era curta. Começou suas aulas com Freitas, de acompanhamento. Um dia ouviu um 78 RPM de Segovia tocando Recuerdos de la Alhambra e pirou: era aquilo que queria fazer. Freitas reconheceu sua ineficiência no campo e o levou para o prof. Antônio Rebello

Meu amigo Jodacil estudou com ele a vida toda. Ficaram amigos, e com ele conheceu outros amigos da vida toda, como Turibio Santos e Sergio Abreu, aquele aluno e este neto de Rebello. Mas um fator determinante para tirar o tímido e retraído Jodacil “da casca” foi seu colega de escritório, Hermínio Bello de Carvalho. Por conta de sua imaginação e energia, arrastou Jodacil para todos os programas possíveis, festivais, apresentações na TV, vivia inventando atividades para o amigo. 

Meu amigo Jodacil estudava violão sacrificando o almoço. Ia para a oficina d’O Bandolim de Ouro, fabricante dos violões Do Souto, e lá passava sua hora de comer. Um copo de leite – com sal! – substituía a refeição. Assim foi se tornando um dos maiores professores do instrumento, pioneiro, junto com Turibio, da colocação do violão na Universidade, e colecionando grandes alunos. Joyce Moreno, Guinga, Heitor TP, Marcelo Kayath, Leo Soares (seu irmão adotivo, depois aluno e também professor de Marcelo. Seu pai era patrão do pai de Jodacil e adotou seus irmãos menores), Helio Delmiro... Deixou sucessora na Universidade Federal de Uberlândia a prof. Sandra Mara Alfonso, autora de sua imperdível biografia. Alguns desses já eram músicos prontos quando trabalharam com Joda, mas em todos ele deixou sua marca de seriedade e amizade. 

Meu amigo Jodacil acabara de se aposentar quando entrou na minha vida. 70 anos, filhos criados, resolveu descansar. Nos conhecemos numa festa e ficamos amigos, de uma forma muito simples. Aprendi mais de vida que de violão, certamente, pois vivo mais que estudo. Era um mestre 24 horas por dia.

Meu amigo Jodacil ficou doente. Ignez me ligou, pedindo sigilo; ele havia sido diagnosticado como portador de um câncer inoperável. Ele não sabia. Nada a fazer, resolvemos, eu e Sergio Abreu (com quem compartilhei o segredo), tornar seus últimos dias inesquecíveis. A previsão médica era de 6 meses, mas devemos ter feito um bom trabalho, pois ele esteve conosco mais 5 ou 6 anos! E anos produtivos, com viagens, palestras... Um dia, voltando de um jantar, do nada, ele me disse:

-Se eu tivesse uma doença incurável eu não ia querer saber.

-Pois fique tranquilo: jamais vou te dizer se você tiver uma!

Meu amigo Jodacil partiu num novembro, pouco depois de seu 81º aniversário. Estive com ele no hospital, na véspera; me disse que eu fui um bom amigo, eu disse o mesmo para ele. Sabíamos que seria a última vez que nos veríamos nessa vida. Nunca o ouvi falar mal de ninguém. Tinha opiniões fortes, mas sempre que havia uma crítica a fazer a envolvia numa sugestão de melhora, numa alternativa. Era um intérprete sensível, embora não fosse de palco. Seu teatro era a sala de aula, onde era magnífico. Deixou um caderno onde anotava cada detalhe a respeito da carreira de seus alunos. Um recital, um show, um disco lançado, ele anotava tudo, mesmo quando o aluno não lembrava de avisar. Ele zelava de longe, observando e se orgulhando, silenciosamente, como era seu estilo. 

Um grande sujeito, o meu amigo Jodacil.


Comentários

Divulgue seu lançamento