Coisas Nossas

Meu Lar é o Botequim

sexta, 19 de abril de 2019

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O costume de se reunir para conversar e celebrar é uma das características do carioca. Esse espírito descontraído pode ser flagrado em todos os seus botequins. Local que traduz a alma dos habitantes da cidade. E mesmo não sendo uma exclusividade carioca, é no Rio de Janeiro que o botequim se realiza na plenitude de sua vocação, resistindo a modismos e tentativas recorrentes de “gourmetização”.

Investigando a origem da palavra, descobrimos que “botequim” deriva de “botica”, uma mistura de farmácia com mercearia, onde se vendia “de um tudo”. De lá para cá, abastecer a despensa ou comprar remédios tornou-se um mero pretexto para encontrar amigos e colocar a conversa em dia, bebendo e “picando” tira-gostos. O nosso famoso PF (prato feito) também foi incorporado aos nossos hábitos: feijão, muito arroz, macarrão e carne. O picadinho e o bife a cavalo também entraram no cardápio. Inevitavelmente, em se tratando da cidade maravilhosa, os botequins começaram a se misturar ao samba e ao choro. Um bom exemplo dessa deliciosa mistura foi o Zicartola. Surgido na década de 60, tendo à frente a cozinheira Zica mulher do genial sambista Cartola, o local foi palco de revalorização dos sambistas de morro e de lançamento de valores como Paulinho da Viola.

O botequim é conhecido por diversos nomes: baiúca, bar, bitaca, birosca, bitácula, bistrô, bodega, boliche, boteco,  caipirinha, catraia, chafarica, frege, frege-moscas, futrica, girianta, guarita, locanda, malcozinhado, pulperia, pé-sujo, taberna,  tasca, tasco, tenda, tendinha, venda, vendola.

Independente da sua denominação, o café, o bar ou o botequim é um patrimônio da cultura do Rio de Janeiro. Desde o seu estabelecimento na cidade ainda no século XVII, o botequim esteve presente em todos os momentos políticos, culturais e sociais do carioca. A canção popular é a maior prova disso. Noel Rosa, o poeta da Vila, dedicou a ele, em parceria com o pianista Vadico, uma das suas mais belas canções, uma prodigiosa crônica dos cafés cariocas, um verdadeiro retrato da cidade do Rio de Janeiro: o samba obra-prima “Conversa de Botequim”, clássico de 1935.

"Seu Garçom, faça o favor
De me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo
Um copo d’agua bem gelada"

A cidade pode se orgulhar dos seus bares, cafés e botequins. São dezenas de estabelecimentos importantes e históricos. Alguns com mais de 100 anos de existência, como o Café Lamas localizado no bairro do Flamengo. O poeta popular sabe disso e faz um singelo passeio por eles na música “Bares da Cidade” gravada em 1978, de autoria de João Nogueira e Paulo César Pinheiro:

"E eu vou levando minha alma aflita
À noite a cidade é tão bonita
Do Lamas ao Capela, e da Mem de Sá
Passo no Bar Luís
E no Amarelinho é que eu vou terminar"

O botequim é um pouco a segunda casa do carioca. Lá ele encontra os amigos, a paquera, um grande amor. Lá ele fala de tudo, de futebol e do governo. Na mesa do bar, ele conserta todos os problemas da nação. E, principalmente, bebe. É o que descreve deliciosamente o samba de 1968, chamado de “Mudando de Conversa”, de Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho:

Mudando de conversa onde foi que ficou
Aquela velha amizade?
Aquele papo furado todo fim de noite
Num bar do Leblon?
Meu Deus do céu, que tempo bom!
Tanto chopp gelado

O botequim não é só testemunha dos bons momentos, da paquera, dos encontros, da alegria, da comemoração e felicidade. É também o lugar onde se choram as mágoas, as saudades, os ressentimentos, conforme se vê na canção de 1957, intitulada “Bar de Noite”, de Bidu Reis e Haroldo Barbosa:

Bar, tristonho sindicato
De sócios da mesma dor
Bar que é o refúgio barato
Dos fracassados do amor.

O botequim, enfim, é um verdadeiro monumento à boemia, à amizade, ao talento e ao amor à liberdade.

“Às pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto,  que o meu lar é o botequim”, já dizia Noel no seu samba-testamento “Último desejo”.


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