Coisas Nossas

Nas cordas de um genial Garoto 2

continuação

quinta, 21 de fevereiro de 2019

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Garoto nasceu em 1915 na cidade de São Paulo. Morreu de infarto em 1955, na rua Constante Ramos n. 30 apt. 1002, em Copacabana, prestes a completar 40 anos de idade. Apesar de ter tido pouco tempo de vida, é dono de uma biografia espetacular. Foi músico virtuoso e compositor da melhor qualidade. Iniciou sua carreira profissional com cerca de 11 anos de idade. Começou a tocar banjo muito jovem, ficando conhecido como “Moleque do Banjo”. Em pouco tempo, já dominava diversos instrumentos de cordas: violão, cavaquinho, bandolim, guitarra havaiana, guitarra portuguesa, guitarra elétrica e violão tenor. Aliás, foi ele quem introduziu o violão tenor no Brasil. Com apenas 15 anos, em 1930, estreou em disco solo ao lado do violonista Serelepe, interpretando duas músicas próprias, porém, ainda assinando com o nome de Aníbal Cruz. Pouco tempo depois, trocou seu nome artístico para Garoto. Participou de diversos programas de rádio, principalmente na lendária Rádio Nacional do Rio de Janeiro, apresentando-se em inesquecíveis programas, como o Um Milhão de Melodias e o Canção Romântica. Também esteve à frente de programas autorais, como Garoto e seu Violão e o Senhor Violão, só para citar alguns. O músico acompanhou artistas importantes da sua época, entre eles Sílvio Caldas e Carlos Gardel, chegando a trabalhar por oito meses ao lado de Carmen Miranda nos Estados Unidos. 

Juntamente com Chiquinho no acordeom e Fafá Lemos no violino, Garoto formou o famoso Trio Surdina. Trabalhou intensamente tocando em bailes e shows da cidade. Como compositor, fez a trilha sonora para o filme Marujo por acaso e mais duas músicas para o filme Chico Viola não morreu. Na incipiente TV do início dos anos de 1950, Garoto apareceu duas vezes na Tupi de São Paulo. A primeira, como convidado de José Vasconcelos e a outra, quando ele e o maestro e arranjador Radamés Gnattali executaram a versão reduzida do “Concertino n. 2 para violão e piano”4.

Apesar de ter sido um instrumentista virtuoso, um gênio das cordas, Garoto não deixou muita coisa gravada. Por este motivo, não se sabe muito dele como músico. Felizmente, transcreveu todas as suas músicas e arranjos para a partitura musical, o que acabou fazendo do artista uma espécie de “músico dos músicos”, segundo classifica o jornalista João Máximo5. Assim, seu maior legado foram suas composições. Neste quesito, ele dividiu a história do violão moderno em duas partes. E foi a partir das obras de Garoto que houve uma clara mudança nas melodias e harmonias dos compositores das gerações seguintes, engrandecendo a música brasileira. Sem dúvida, o instrumentista pode ser “ouvido” através das suas composições, das suas invenções melódicas e das suas harmonias inusitadas. 

Na qualidade de arranjador, Garoto brilhou nos programas de rádio, principalmente em parceria com Radamés Gnattali. Juntos, firmaram a dupla que melhor representa a transição da música popular e da música clássica para, simplesmente, música. Sem rótulos. Os dois se tornaram grandes amigos, passavam férias e fins de semana juntos no sítio que Radamés tinha em Areal, no estado do Rio de Janeiro. Local em que Garoto acabou também construindo uma casa. 

Ao contrário de muitos músicos da sua geração, Garoto foi um artista que viveu exclusivamente de música. Trabalhava intensamente para sobreviver. Mesmo assim, sua diversão preferida nos momentos de folga era tocar violão e participar de encontros informais com grandes músicos e compositores como Pixinguinha, Laurindo de Almeida, Luiz Bonfá, Sivuca e muito outros. Radamés conta:

“Ele estava sempre com o violão e dizia: ou o violão me mata ou eu mato ele... Era meio maluco. E eu tocava minha flautinha, o pior flautista do mundo, mas o melhor acompanhado. Ficávamos lá no sítio de noite, tocando choros de Pixinguinha com Alberto Ribeiro no órgão e o Garoto fazendo aquelas harmonias diferentes6.

Uma das contribuições da obra de Garoto e, para não ser injusto, também das composições deixadas por Custódio Mesquita e Valzinho, foi a formação da  incensada bossa-nova. A introdução de acordes dissonantes no violão brasileiro, por exemplo, foi uma delas. Por si só, essa já seria uma das razões para considerá-lo um dos precursores desse movimento. Aqui cabe um parêntese: a palavra “bossa” foi tirada da medicina e incorporada ao cancioneiro popular nos anos de 1930, pelo compositor Noel Rosa. E mesmo Garoto já o havia utilizado, em 1945, quando formou o conjunto “Bossa Clube”. Três anos depois da morte de Garoto, caberia ao baiano João Gilberto e à sua batida diferente apontarem novos rumos para o violão brasileiro. Ressalte-se que João adorava os encadeamentos harmônicos de instrumentista e compositor.

A obra de Garoto é moderna e genial. Em menos de 40 anos de vida, deixou um legado “monumental”, como afirma seu biógrafo Jorge Mello. Ele acrescenta que a obra de Garoto ainda não é “devidamente apreciada e que é uma pequena parte do que produziu ao longo desses anos de atividade artística”7. Não se tem notícia de que Garoto tenha realizado muitas gravações ao violão. Os registros são escassos. Muita coisa ficou perdida nos acetatos da Rádio Nacional ou não foi gravada. Mesmo assim, o músico deixou mais de 200 músicas catalogadas8. Um dos seus sucessos foi o samba-canção Duas contas, música e letra do próprio Garoto. Por muito tempo foi sua canção mais conhecida, sendo uma das poucas obras da música brasileira que não tem rimas, revelando também um letrista sofisticado. Curiosamente, seu sucesso mais popular foi um dobrado, São Paulo quatrocentão, em parceria com Chiquinho do Acordeom. Sua obra como um todo já conta com mais de 600 gravações9

O fato é que Garoto estava muito à frente do seu tempo. Sua formação foi eclética e requintada. Ouviu muito choro, samba, jazz e música clássica. Adorava Debussy. Sua obra reflete todas estas tendências: moderna refinada e muito brasileira, não se atendo a um brasileirismo que limitaria a própria música. Garoto foi muito mais do que um precursor da bossa-nova. Isto seria reduzi-lo a um gênero em extinção. Sua influência é contagiante, afetando o violão e a música de Baden Powell, passando pela magnífica obra de Tom Jobim e chegando a todas as gerações de artistas que o sucederam. Como afirmou o compositor Guinga, “Ele será bem mais conhecido nos seus 200 anos”. A música brasileira agradece e comemora os 100 anos de Garoto. Todos os músicos têm um pouco dele no coração.

A história da parceria na música Gente Humilde poderia ter sido outra: Vinicius de Moraes, exultante, ao telefone, anunciaria: “agora Garoto é meu parceirinho”. Tom Jobim teria morrido de ciúmes.


4Site www.violaobrasileiro.com
5O Globo, Segundo Caderno, 27.06.2015
6Aloísio Didier, Radamés de A a Z. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1996, p.65.
7Mello, Jorge. Gente Humilde, vida e música de Garoto. São Paulo:  SESCSP, 2012.
8idem
9Site www.memoriamusical.com.br


Este o segundo capítulo da série "Garoto". Para ler o primeiro capítulo, clique AQUI

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