Resenha de Samba

Nêgo Bispo e a Ancestralidade dos Batuques do Piauí

sexta, 15 de dezembro de 2023

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Os sambas do Piauí foram ressignificados com articulação do líder quilombola

Partiu para o orum, no primeiro domingo deste mês, Nêgo Bispo (Antônio Bispo dos Santos, 10/12/1959 - 03/12/2023), talvez o maior filósofo do Piauí de todos os tempos. Muito se tem falado da importância do pensamento de Nêgo Bispo, porém, o que poucos conhecem é a sua contribuição para o processo de reconhecimento dos Batuques do Piauí, a partir de meados dos anos 2000. Segundo Bispo, ao conversar com Ricardo Augusto Pereira, historiador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sobre o tombamento da Fábrica de Manteiga e Laticínios onde homens negros ex-escravizados trabalhavam, não teve dúvida e provocou: “em vez de exaltarem o nosso opressor, por que não exaltam nosso povo e fazem um inventário dos batuques do Piauí?”. A provocação deu certo.

Nêgo Bispo em Xilogravura de Artur Soares, 2020

Dessa simples conversa a céu aberto no semiárido nordestino, muitos frutos foram plantados e colhidos. Quem vive nas grandes cidades do sudeste, eixo privilegiado sob vários aspectos, desconhece a riqueza cultural de torrões distantes menos favorecidos, como o sertão do Piauí. Assim, é comum que perguntas comoo Piauí tem Samba?”, ou existe comunidade quilombola no Piauí? sejam feitas. O Piauí não tem Samba, tem sambas, batuques dos mais diversos e apesar de existirem à margem do mercado fonográfico, possuem uma riqueza cultural que arrepia. O estado é um dos que mais tem Comunidades Quilombolas de todo o Brasil, passando das contas de 250. Embora Bispo não fosse sambista, foi um dos grandes articuladores para o reconhecimento dos batuques do Piauí e a maior liderança quilombola do estado.

“Lá vem a barra do dia / O dia amanhece já / Lá vem a barra do dia / O dia amanhece já / O dia viajô, viajô / Pra outro lugá” 
[cantiga tradicional do Batuque da Volta do Campo Grande]

Pagode do Mimbó (Amarante-PI), um dos mais tradicionais batuques do Piauí | Foto: Tina Coêlho

Em 2021, durante a pandemia, em confluência com Bispo e com a jornalista Francisca Sousa a respeito dos batuques piauienses, ele nos explicou que sua proposta original de realizar um inventário estadual dos batuques do Piauí acabou não sendo colocada em prática. Numa reunião da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ), decidiu-se por um inventário mais amplo, que englobasse todas as expressões culturais existentes nos quilombos, como Umbanda, garrafada, farinhada e não apenas os batuques. 

Com isso, o Iphan junto a CECOQ tiveram que escolher apenas alguns batuques para o inventário, deixando de documentar uma série de outros sambas do Piauí. Voto vencido, Bispo lamentava que o batuque praticado em sua terra natal, no município Francinópolis, também chamado de Baião e ainda hoje praticado ao som de rabeca e caixote de madeira não tivesse sido incluído nos estudos. Para ele, o Inventário dos batuques do Piauí ainda estava por fazer.

“Pisa e sessa / Penéra e coa / Café das menina / É coisa boa / Pisa e sessa / Penéra e coa / Café das menina / É coisa boa / Pisando, sessando / Peneirando e coando / Café das menina / É que tá me matando”
[cantiga tradicional do Batuque da Volta do Campo Grande e do Batuque de Negros e Negras do Bráz da Malhada]

Tambor de Crioula na região dos Cocais (PI) | Foto: Tina Coêlho

Mesmo o tão desejado inventário sobre os batuques piauienses não acontecendo, estudos sobre o assunto passaram a ser produzidos a partir da conversa de Bispo com Ricardo Augusto. Assim, em 2007 o Iphan realizou o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) das Comunidades Quilombolas do Piauí, estudo e mapeamento sobre os bens culturais existentes em 22 quilombos do Piauí, sendo Antônio Bispo dos Santos um de seus autores. Dos diversos batuques existentes no Piauí, os selecionados para que fossem estudados e retratados logo ganharam uma série de documentários curtas-metragens realizados pelo Iphan:

1) “Cumbuca de Quilombo” (2007), sobre o Reis e o Samba de Cumbuca de Salinas (Campinas do Piauí), de Roberto Sabóia e Ricardo Augusto;
2) “Lá vem a barra do dia” (2008), sobre o Samba de Cumbuca da Volta do Campo Grande (Campinas do Piauí), de Roberto Sabóia e Ricardo Augusto;
3) “Lezeira”, sobre o Batuque de Lezeira do Quilombo Custaneira (Paquetá do Piauí), codireção de Ricardo Augusto e César Crispim;
4) “Cabeça de Bale” (2013), sobre o Batuque do Curral Velho (São João do Piauí), de Roberto Sabóia;
5) “Pagode do Mimbó” (2013), de Amarante, de Roberto Sabóia;
6) “Batuque dos Reis” (2014), do Brejão dos Aipins (Redenção do Gurguéia), de Roberto Sabóia;
7) “Tambor de Crioula – Região dos Cocais Piauiense” (2014), de Roberto Sabóia.


Documentários sobre Batuques foram produzidos após provocação de Bispo | Acervo ABD-PI


Em 2012, com participação de Bispo, foi lançado o livro “Bens Negros - Referências Culturais em Comunidades Quilombolas do Piauí” além de “Povos Quilombolas do Piauí – memórias, práticas e modos de vida”, de 2013, organizados por Ricardo Augusto. Em ambas as obras os sambas do Piauí são representados. Em 2014, Nêgo Bispo atuou na direção do documentário média-metragem “O Jucá da Volta com Mestre Ernestino Damasceno”, que retrata a Capoeira em uma de suas formas primitivas, ainda como uma luta de porrete. Aliás, Bispo foi o responsável por Mestre Tizil ter ido morar no sertão do Piauí. Natural de Juazeiro (BA), Tizil é um dos fundadores do Movimento Capoeira de Quilombo e importante liderança no Piauí desta expressão cultural.

No ano de 2015, o Iphan torna público o “Relatório Etnomusicológico sobre os batuques das Comunidades Quilombolas Mimbó, Salinas, Costaneira e Curral Velho”, de Juliana Carla Bastos. Em 2017, como resultado de toda essa mobilização, finalmente Nêgo Bispo assina pedido de registro feito pela CECOQ para que os Batuques das Comunidades Quilombolas do Piauí mencionados fossem considerados Patrimônio Cultural Brasileiro junto ao Iphan.

“Sia dona eu te peço / Pelo amô de Deus / Quem compra na venda / Quem paga sô eu / Sô eu, sô eu / Sôôôôô Eeeeeeeeu / Sia dona, sô eu!”
[cantiga tradicional do Batuque de Negros e Negras do Bráz da Malhada]

Batuque do Curral Velho (São João do Piauí) | Foto: Tina Coêlho

Como se pode perceber, a simples provocação de Bispo ao historiador do Iphan resultou em documentação considerável, gerando inclusive produtos físicos sobre os batuques piauienses. A partir dessa conversa, o Piauí ganhava não apenas o maior historiador dos batuques de suas comunidades negras, Ricardo Augusto Pereira, como também o maior documentarista desses mesmos batuques, Roberto Sabóia.

Quando estive com Bispo, perguntei se ele havia guardado os áudios das entrevistas feitas com os mestres de Batuque piauienses durante o INRC, pois eu tinha interesse em escutá-los. Bispo então proferiu uma de suas muitas lições sobre seu modo de encarar a vida: Diferentemente do que muita gente faz, eu não trabalho com essa história de estar armazenando sinteticamente as questões. Eu trabalho em busca da resolutividade. O saber sintético atua em função do ter e o saber orgânico em função do ser”.

O questionei, então, se os livros e os filmes eram o maior legado de toda a mobilização gerada por sua provocação, ao que foi enfático: “Não!”. Para ele, o maior legado de toda essa produção em torno dos batuques do Piauí havia sido a aproximação gerada entre as comunidades quilombolas, já que antes esse contato quase não existia e passou a existir com esses projetos.

Ainda como legado do trabalho de Bispo na defesa dos Batuques do Piauí, o Iphan tornou público em 2019 o estudo “Territórios e Memórias - diálogos sobre os Batuques em São João do Piauí”, da antropóloga Ariane Couto Costa e do sociólogo Fábio Guaraldo Almeida, que gerou documentário curta-metragem com mesmo nome, também em 2019.

Por fim, graças a Bispo, eu e Francisca pudemos conhecer um grande sambista do Piauí: Francisco de Aquino Pereira, que veio a falecer apenas 3 meses depois. Como Seu Chiquim estava muito doente, Bispo ficou feliz em saber que passamos uma tarde inteira com ele entoando sambas de seus antepassados. Esse encontro mediado por Bispo permitiu que produzíssemos de modo independente o documentário curta-metragem “Seu Chiquim do Batuco do Brás”, de 2021. 

“Boi estrela, mangueira / Boi estrela, mangueira / Boi estrela, mangueira / Você mandô me chamá”
[cantiga tradicional do Batuque de Negros e Negras do Bráz da Malhada]

Os batuques do Piauí, assim como quase todas as culturas originais, sofrem hoje com a falta de continuidade. Se até fins de 1990 os batuques eram uma das principais brincadeiras de comunidades étnicas negras, hoje deixaram de ser. A razão é muito simples: concorrência desleal. Hoje o Batuque concorre com distrações como internet, redes sociais, aplicativos, streamings como Netflix, cultura de massa entre outras.

Por isso, percebendo que os batuques estavam de alguma forma se enfraquecendo com a falta de renovação das novas gerações, perguntei a Bispo se estávamos vivenciando a última geração do Samba do Piauí, ao que recebi enérgica resposta: A nossa memória é ancestral, é diferente dessa memória sintética que as pessoas exercitam. Às vezes a gente pensa que tá acabando, mas não tá, não. Tá só…tem toda uma memória ancestral que vai aparecendo e desaparecendo”.

“O povo tão dizêno / Que esse Samba acaba já / Mas ele vai de manhã / Ele vai de manhã / Ele vai de manhã / É de madrugada”
[cantiga tradicional do Batuque da Volta do Campo Grande]


Poema que Bispo orgulhava-se de ter composto | Livro Bens Negros, Iphan, 2012

De tantos mestres que conheci no Piauí, o último que imaginei que ia partir era Bispo. Figura essencial não só para o movimento quilombola do Piauí e para o estado, mas para o Brasil e o pensamento universal. As suas ideias eram geniais, embora também tivesse atitudes controversas. Bispo era um grande provocador, ele te fazia pensar quando falava. Sua partida deixa um grande vácuo no Piauí, um vazio imenso. Seus pensamentos dualistas nos faziam ter que escolher entre dois lados como “saberes orgânicos e saberes sintéticos”, “sociedade eurocristã monoteísta e sociedade afropagã politeísta”, onde quase sempre o lado que ele defendia era o certo. 

Quais ações levam uma pessoa a ser considerada filósofa? Uma das definições diz que o filósofo é um criador de conceitos. E Bispo foi um grande mestre na arte de criar conceitos, sempre muito elegantes, se utilizando de “palavras germinantes” que geram grande efeito e fazem de fato pensar, como “cosmofobia” e “contracolonialismo”. Tanto que já estava conquistando o Brasil. Outro dia num debate sobre Samba aqui em São Paulo Nêgo Bispo foi citado.

Quando terminamos nossa conversa em 2021, o questionei sobre como deveria identificá-lo: intelectual? pensador? filósofo? Ao que ele respondeu, com grande sinceridade: Sou um tradutor de saberes. Traduzo o saber do meu povo para a sociedade e traduzo os valores da sociedade para o meu povo”. Com Bispo, finalmente os diversos sambas do Piauí ganharam força e vêm sendo cada vez mais reconhecidos Brasil afora.

“Eu subo na mangueira / E tiro a manga devagá / Eu subo na mangueira / Eu vô tirá”
[cantiga tradicional do Batuque de Negros e Negras do Bráz da Malhada]

Os encantados Ignácio e Nêgo Bispo ao lado de Mestre Naldim, no Quilombo Custaneira (Paquetá-PI) | Foto: Francisca Sousa, 2021

O funeral de Bispo aconteceu em meio a batidas de tambores entremeadas com doutrinas do povo de terreiro e seu corpo foi sepultado debaixo de um pé de angico, na roça onde ele labutava e morava no Quilombo Saco Curtume, em São João do Piauí. O 7º dia de sua viagem coincidiu com o seu aniversário. Por isso, sambistas de diversos pontos do estado se reuniram nessa mesma roça para entoar batuques e celebrar o seu encantamento.

Hoje, graças a articulação inicial de Bispo, o processo dos Batuques das Comunidades Quilombolas do Piauí se encontra em estágio avançado de avaliação para se tornar Patrimônio Cultural Brasileiro junto ao Iphan. As comunidades negras de batuques que mantêm a continuidade de suas culturas, as repassando incansavelmente de geração para geração, lutando contra tudo e contra todos, são o que há de melhor nesse Brasil que o próprio Brasil desconhece. A história dos batuques do Piauí possui começo, meio e continuidade, mas não fim.

Salve Nêgo Bispo, o Tradutor dos Saberes Ancestrais Quilombolas!

Couro do tambor sendo aquecido em meio a caatinga piauiense | Foto: Tina Coêlho

“Aroeira bota cacho / Angico bota pendão / Eu morro e dô a vida / Pelo nomo de João / Aí meu Deus / É hora, é hora / Aí meu Deus / É hora, é hora / Eu nem dei / Nem mandei / Nem deixei / Pá ninguém dá / Eu não sô / Soca de cana / Pá morrê / E torná voltá / Eu nem dei / Nem mandei / Nem deixei / Pá ninguém dá / Eu não sô / Cerca de rama / Para o fogo me queimá”
[cantiga tradicional do Batuque da Volta do Campo Grande]




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