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Ney Matogrosso: 80 anos de um artista que ensinou o Brasil a transgredir

por Lucas Vieira

quinta, 05 de agosto de 2021

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Uma voz única, uma dança única, um jeito de se vestir único, uma interpretação única. Nascido em 1 de agosto de 1941 na cidade de Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, Ney Matogrosso chega aos 80 anos com fácil definição: Único. Ativo em diversas formas de arte, o cantor conquista o Brasil há quase cinquenta anos, com seu jeito transgressor e imponente, e segue até hoje como um dos pilares da música popular brasileira.

Antes da música, Ney Matogrosso buscou outras carreiras profissionais. Desde criança inclinado para a vida artística, adorava fazer desenhos e seu grande sonho era ser ator. A ideia não era bem aceita na família, principalmente pelo pai militar, com quem o artista teve uma difícil relação na infância e adolescência.

Ney ingressou na aeronáutica aos 18 anos, abandonando a casa de sua família por conta dos conflitos e pelo preconceito dos familiares que não aceitavam sua inclinação para as artes e sua homossexualidade. Após desistir da carreira militar, foi viver a ideologia hippie: uma vida baseada na crença e prática da solidariedade, da paz e do amor. Produzindo e vendendo artesanato no Rio de Janeiro, aproximou-se da musicista Luli (que fez dupla com Lucina), que na época residia no bairro de Santa Teresa.

Foi Luli quem apresentou Ney Matogrosso a João Ricardo e Gerson Conrad, que procuravam um cantor de voz aguda para formar com eles um trio. Após as apresentações e testes, os três artistas formaram o Secos & Molhados, uma banda histórica para a música brasileira, marcante pela ideia inovadora de misturar música popular com elementos de rock e poesia, em fórmula que garantiu sucesso meteórico e inesquecível.

Com suas danças e maquiagem, a banda surpreendeu o Brasil em 1973 e mesmo os mais conservadores, que repudiavam a estética daquele grupo de músicos com seus figurinos e apresentações, não conseguiram resistir ao sucesso e a qualidade que conquistou jovens, idosos e crianças.



Segundo Ney Matogrosso revela em diversas entrevistas, o uso da maquiagem tinha um propósito além da estética. Para não perder sua liberdade após conquistar a fama, com o assédio do público, o artista usou a pintura inspirada no teatro japonês kabuki para não ser reconhecido fora dos palcos.

A formação original do grupo durou apenas até 1974, pouco tempo depois do lançamento do segundo disco. Após brigas internas, Gerson e Ney saíram da banda que nunca mais se reuniu com os integrantes que gravaram os dois primeiros álbuns e conquistaram o Brasil. Mesmo assim, eternizaram canções como “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Fala”, “Flores Astrais” e “Delírio”.

Um terceiro LP com a formação original chegou ao mercado em 1980, registrando o show histórico dos Secos & Molhados no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Apesar da baixa qualidade técnica, o álbum gravado em 1974 mostra a energia da banda no palco, sendo exaustivamente aplaudida pelo público que lotou a casa de shows.



Após as brigas e o término do grupo, era claro que um artista com a voz e a performance de Ney Matogrosso seria um grande sucesso também em carreira solo. Em 1975 seu álbum de estreia, “Água do Céu Pássaro”, chegou ao mercado com gravações poderosas, cheias de energia, e um projeto gráfico de luxo, acompanhado por um compacto. Entre canções como “Corsário”, “Bodas” e “Coubanakan”, estava “América do Sul”, faixa que rendeu clipe no programa Fantástico, naquela época um grande indicativo de sucesso.

Ney seguiu sua carreira solo colecionando hits, como “Mulheres de Atenas”, “Tigresa”, “Bandolero” e “Encantado”. Se antes a tônica no Secos & Molhados eram letras autorais e poesias de grandes autores, o repertório do cantor agora era formado por composições de grandes nomes da MPB: Chico Buarque, Rita Lee, Caetano Veloso e Milton Nascimento estavam entre os artistas que cediam canções para o novo fenômeno da música popular brasileira, que a cada novo show apresentava figurinos e performances mais inovadores e com um cuidado ímpar.

Na década de 1980, o cantor desponta também como grande descobridor de talentos. De olho na nova geração do rock brasileiro, Ney Matogrosso teve uma relação profissional e amorosa intensa com Cazuza, de quem gravou hits como “Pro Dia Nascer Feliz” e “Poema”. Foi também nessa época que o artista colocou em prática seus talentos como iluminador e diretor de shows, tendo participado de espetáculos como “O Tempo Não Para”, do autor de “Exagerado”, e “Rádio Pirata”, da banda RPM, um dos maiores sucessos da década de 1980. Ainda atento aos sinais do presente e do futuro, uniu-se em 1991 com o talentoso violão de Rafael Rabello (“A Flor da Pele”) e em 2004 com o grupo Pedro Luís e A Parede, em “Vagabundo”.

Hits como “Homem Com H”, “Napoleão” e “Balada do Louco” também são da década de 1980. Nessa época, Ney também desponta como artista de renome internacional, com apresentações emblemáticas fora do Brasil. Em 1983, durante o Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, realizou show histórico, registrado em disco, enquanto o artista plástico Keith Haring fazia uma pintura inspirada no cantor no palco. Também é dos anos 1980 o show “Pescador de Pérolas” (1987), caracterizado por roteiro em que o artista abandonou as maquiagens e roupas extravagantes e se apresentou vestido de terno e gravata.



Nos anos seguintes, outro marco na carreira de Ney foram os discos dedicados inteiramente a obras de um único artista. Em “Um Brasileiro” (1996) dedicou-se ao cancioneiro de Chico Buarque. Com “O Cair da Tarde” (1997) uniu-se ao grupo Uakti para interpretar composições de Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim. Já em 2002 lançou “Ney Matogrosso Interpreta Cartola”, com músicas do repertório do sambista carioca.

Os álbuns ao vivo e DVDs são o destaque da discografia do cantor a partir da década de 2010. Em “Beijo Bandido” (2011) trouxe repertório marcado principalmente pela dramaticidade, em “Atento Aos Sinais Ao Vivo” investiu em tom pop e com “Bloco Na Rua” (2019) intensificou o tom político.

Aos 80 anos, em 2021, Ney Matogrosso segue como um artista de intensa relevância para a MPB. Mesmo com o desgaste natural de sua voz, continua com canto impecável, como mostra o EP “Nu Com A Minha Música”, em que apresenta faixas do álbum de mesmo título, com lançamento previsto para novembro. Com seu talento, mantém a habilidade de dar vida nova a canções já consagradas ou esquecidas, assim como tem energia de projetar novas gerações com sua coragem transgressora.

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