Historicizando as canções

“Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!”: breves comentários sobre alguns artistas nordestinos

terça, 10 de outubro de 2023

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Oficialmente a região Nordeste é uma das cinco regiões do Brasil, definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Contudo, apesar de se achar que essas regiões são definidas por questões climáticas, espaciais e geográficas, são em última instância criações humanas, como bem aponta o historiador Durval Muniz de Albuquerque, autor de, entre outros, A invenção do Nordeste e outras artes, originalmente sua tese de doutorado. 

A ideia de nordeste vem do início do século 20, seguindo o interesses das elites da tal região Nordeste, uma terra idílica, perdida em um tempo passado, dominada pela seca, um lugar de “cabra macho da peste”, de gente “matuta” mas com cordialidade, um povo devoto à diversos santos católicos e outras facetas.

A arte, em suas diversas áreas, foi responsável por propagar esse imaginário do que seria nordeste. No texto de hoje iremos elencar alguns artistas musicais dessa região.

Luiz Gonzaga do Nascimento ou simplesmente O Rei do Baião, nascido em Exu, município de Pernambuco, talvez seja o primeiro nome que vem à mente quando se pensa em música nordestina. Raul Seixas em uma entrevista ao Pedro Bial compara Gonzaga com Elvis Presley, aponta que o jeito de cantar dos dois era parecido, e os dois criaram para si uma imagética, no caso de Luiz Gonzaga um visual ligado ao Sertão, de um sertanejo, suas músicas ajudaram a compor um som associado ao Nordeste, aqui pontuamos a canção "Apologia ao Jumento":

O jumento sempre foi
O maior desenvolvimentista do sertão!
Ajudou o homem na lida diária
Ajudou o homem
Ajudou o Brasil a se desenvolver

Créditos: Fundo Correio da Manhã

Raul Santos Seixas nasceu em Salvador, Raulzito com certeza é um dos principais nomes do rock brasileiro, ao lado de Rita Lee e Erasmo Carlos. Foi produtor na gravadora CBS, inclusive foi onde conheceu Odair José e até deu uma força para que Odair gravasse aquele que talvez seja seu maior sucesso, Eu vou tirar você desse lugar. Raul Seixas era apaixonado pelo rock estadunidense e sua obra não esconde isso. A música destacada aqui é Ouro de Tolo:

Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador

 Créditos: Fundo Correio da Manhã

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira nasceu em Juazeiro na Bahia, é um dos nomes mais emblemáticos da música brasileira, um dos símbolos da Bossa Nova, um movimento da elite carioca mas que tem entre seus grandes nomes um nordestino. Quem o conheceu o classifica como uma pessoa difícil de lidar, uma figura única e estranha. Fez sucesso no mundo todo com seu jeito de tocar e cantar:

“O coração tem razões que a própria razão desconhece
Faz promessas e juras, depois esquece
Seguindo este princípio, você também prometeu
Chegou até a jurar um grande amor
Mas depois esqueceu”

Eurípedes Waldick Soriano nasceu em Caetité na Bahia, indiscutivelmente um dos maiores nomes da música romântica brasileira, de origem pobre, trabalhou desde a infância e conseguiu sucesso na carreira musical, sofreu muito preconceito das elites intelectuais por fazer sucesso entre as camadas mais pobres do país, até hoje é lembrado por seus boleiros repletos de histórias de amores perdidos. Uma de suas músicas mais regravadas foi Tortura de Amor, censurado durante o governo militar, é mais uma canção sobre a dor do amor:

“Hoje que a noite está calma
E que minh'alma esperava por ti
Apareceste afinal
Torturando este ser que te adora”

 Waldick Soriano e Flávio Cavalcanti, na década de 1970. Créditos: Fundo Correio da Manhã

Priscilla Novaes Leone ou apenas Pitty, nasceu em Salvador e começou sua carreira no final da década de 1990. Um dos grandes nomes da nossa música no início dos anos 2000. Um dos seus maiores sucessos é Equalize:

Eu vou equalizar você
Numa frequência que só a gente sabe
Eu te transformei nessa canção
Pra poder te gravar em mim”

Dorgival Dantas de Paiva nasceu em Olho-d’Água do Borges no Rio Grande do Norte, é cantor, compositor, produtor e multi instrumentista. Conhecido pelo repertório romântico. Aqui destacamos Coração:

“É tão ruim quando alguém machuca a gente
O coração fica doente, sem jeito até pra conversar
Dói demais só quem ama sabe e sente
O que se passa em nossa mente
Na hora de deixar pra trás”

Para encerrar eu irei puxar a sardinha para onde eu moro e vou falar do “Pessoal do Ceará” e fazer uma breve discussão sobre regionalidade. Um dos últimos textos dessa coluna foi justamente sobre o “Pessoal do Ceará”, um grupo de músicos que fizeram sucesso nacional na década de 1970, nos últimos meses tenho lido sobre o movimento e tive a consciência que foi e é bem maior do que aparenta, e peço desculpas por ter esquecido de comentar sobre a presença da cantora Téti, Maria Elisete Morais de Oliveira, nascida em Quixadá,  que gravou o disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, ao lado de Rodger Rogério e Ednardo, o disco que ficou conhecido como “Pessoal do Ceará”. Quero deixar registrado sua interpretação da canção Barco de Cristal:

“Mas foi um sonho, ainda é noite
Uma alucinação
Não tem luz teu olhar
Nem mesmo essa canção”

Ricardo Bezerra é professor aposentado da Universidade Federal do Ceará, é um arquiteto e fez parte do grupo que ficou conhecido como Pessoal do Ceará, mas diferente de seus colegas, resolveu ficar em Fortaleza e seguir os estudos. Tem parcerias com Raimundo Fagner e este usou seu prestígio para lançar um disco do amigo, intitulado Maraponga, teve Hermeto Pascoal como o responsável pelos arranjos. Hoje é um disco raro mas é possível ouvir na internet. Vamos citar aqui a canção Cavalo-Ferro que é uma parceria com Fagner e está presente no disco que ficou conhecido como Pessoal do Ceará:

“Montado num cavalo ferro
Vivi campos verdes, me enterro
terras trópico-americanas
Trópico-americanas, trópico-americanas
E no meio de tudo, num lugar ainda mudo
Concreto ferro, surdo e cego
Por dentro desse velho, desse velho
Desse velho mundo”

O nome Pessoal do Ceará gera discussões até hoje, não foi ideia dos artistas se intitularem assim e sim da gravadora, criando o rótulo que permanece. Ednardo e Fausto Nilo, por exemplo, não gostam do nome, acham problemático e que reduz sua obra a algo folclórico, como se fosse uma produção de nicho. E complemento, por que um artista do Rio de Janeiro e São Paulo é considerado brasileiro e quando de outro lugar, Ceará nesse caso, é regionalista? Quem está criando essa hierarquia? A composição de Fausto Nilo é tão nacional e universal quanto uma de Vinicius de Moraes ou Chico Buarque.

Rótulos são redutores, toda a construção criado em torno da ideia de Nordeste criou um imaginário que define a região como algo uniforme, é só perceber que nas novelas da televisão existe o “sotaque nordestino”, todo nordestino é sofrido e viveu a seca, todo homem nordestino é valente, todo o nordeste é atrasado, o nordeste representa um lugar preso no passado e isso é um problema. E muitas das vezes quem propaga o estereótipo são as pessoas desse lugar. Não preciso ir longe, o caro leitor com certeza lembra de algum programa de televisão que leva um “nordestino” que usa uma certa indumentária, fala de um certo jeito, que fala que é batalhador, que sofre na roça e coisas do tipo, criando essa figura que merece condescendência.

Por isso, Belchior estava certo quando cantou:

Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!
Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar!

 


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