Colunista Convidado

O cometa faiscante de Luciana Souza e o Trio Corrente

quinta, 05 de outubro de 2023

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Aleluia! Chegou “Cometa” (Sunnyside), o novo disco de Luciana Souza, uma das maiores cantoras brasileiras contemporâneas. Não conhece? Pode ser. Ela mora há 40 anos fora do país, que prefere a massiva mediania à reinvenção permanente. Com ela, a bordo do “Cometa”, está o paulistano Trio Corrente, formado em 2001, por Fabio Torres (piano), Paulo Paulelli (baixo e percussão vocal) e Edu Ribeiro (bateria). Trata-se de uma modalidade instrumental que proliferou na bossa nova, arrefeceu após o final do movimento, mas voltou a cintilar em exemplos poucos e raros. Como no magnífico trabalho deste trio afiadíssimo, vencedor do Grammy de melhor álbum de jazz latino, por “Song for Maura”, em parceria com o saxofonista cubano Paquito D’Rivera, em 2014, disco também agraciado com o Grammy Latino, dividindo o prêmio com o grande tecladista americano Chick Corea

Capa do álbum "Cometa" de Luciana Souza e Trio & Trio Corrente

Paulistana, nascida em 1966, Luciana radicou-se nos EUA aos 17 anos, mesmo sem dominar o inglês, para estudar no célebre Berklee College, de Boston, onde bacharelou-se em composição jazzística. Também ganhou o grau Master em estudos de jazz no Conservatório New England, tornou-se professora da Manhattan School of Music, de Nova York, e continuou ministrando master classes do Canada à Suíça. Ela é filha dos fabulosos compositores Walter Santos (que iniciou na música, na Bahia, num conjunto vocal com o conterrâneo João Gilberto) e Teresa Souza, autores entre outros de clássicos da bossa como “Azul contente”, “Caminho”, “Amanhã”, “Diz”, “Cadê o amor”, “O bolo”, “Samba só”, “Canção de fim de tarde”, “Acalanto” e “Vem balançar”. Começou na música aos 3 anos, participando de jingles no estúdio da família, que depois se tornaria o influente selo instrumental Som da Gente. Indicada a oito Grammys, ganhou um deles por “The river: The Joni Letters”, ao lado de Herbie Hancock, em 2007. 

“Cometa” é seu primeiro com trio - ela que gravou uma extensa e diversificada discografia, de colaborações com os pops Paul Simon e James Taylor, aos jazzistas Maria SchneiderDanilo PerezBob McferrinJohn Patitucci e brasileiros como Hermeto PascoalRomero LubamboOscar Castro Neves.  Influenciada pela mãe letrista e escritora, ao lado do trompetista de jazz Chet Baker e compositores brasileiros de Gilberto Gil a Adoniran Barbosa, também celebrou os poetas, de Pablo Neruda a Leonard CohenEmily Dickinson e Elizabeth Bishop. O convite para o “Cometa” partiu do pianista Fabio Torres, e eles se inspiraram nos faiscantes encontros da bossa de Elis Regina com o Zimbo Trio. O Corrente tem sete discos gravados, um deles com a Orquestra Jazz Sinfônica  de São Paulo (ela se apresentou com a Bach Akademie Stuttgart The Boston Symphony Orchestra, entre outras)  e a sincronia se dá também pelo fato de ambos falarem a mesma língua musical – a internacional brasileira plantada pela bossa nova, a partir do samba e seus derivados.

             Não por acaso, pontificam nas escolhas do repertório luminares como Dorival Caymmi (1914-2008), o genial baiano que abriu caminho para a inovação na MPB, com sua sintaxe heterodoxa e flexível. Como no samba convite “Você já foi à Bahia?”, lançado pelo conjunto vocal Anjos do Inferno, em 1941. O que poderia parecer uma mera peça de propaganda turística, abre uma avenida de possibilidades harmônicas para as tabelinhas do trio com a cantora. Luciana, a partir dessa faixa de abertura, posiciona-se como um quarto instrumento do trio, tal a precisão de seu vocal em diálogo com o ritmo vertiginoso, mais as pausas e retomadas voluptuosas da canção. De Caymmi, também foi escalado outro bólido impregnado de síncopas, “Requebre que eu dou um doce”, (por coincidência, a outra face do mesmo 78 rotações dos Anjos do Inferno, de 1941), com direito a acendrados solos instrumentais, em resposta à abertura em scat de Luciana, também de intenso balanço. 

             Mais um renomado mestre da canção brasileira antepassada, o mineiro Ary Barroso (1903-1964) é convocado, mas numa canção mansa e dolorida, “Pra machucar meu coração”, desvelada pelo “ditador de sucessos”, o cantor carioca Déo (Ferjalah Rizkalah), em 1943. Após a introdução eivada de dissonâncias de piano e baixo, com o diálogo de improvisos emoldurados em scats, é a vez de Luciana exibir seu lado comovido, conduzindo a canção no fio da navalha em comunhão com a letra, onde adiciona alguns cacos, “já machucou/ vai machucar”. O papa da bossa, Tom Jobim (1927-1994) comparece em sua feição camerística com o parceiro Vinicius de Moraes (1913-1980), no devastador “Sem você” (“sem amor/ é tudo sofrimento/ pois você é o amor/ que eu sempre procurei em vão”), que integrou, não por acaso, o songbook erudito da obra da dupla, “Por toda a minha vida”, de 1959, protagonizado pela cantora lírica Lenita Bruno. A voz educada de Luciana singra o enredo encapelado com sua emissão mais branda, tirando partido do lirismo incandescente da canção.

               O estilo esquinado e anguloso do alagoano Djavan sopra em “Ventos do norte”, num baião fragmentado por contraritmos, bordado pelo Corrente em incessante triangulação de improvisos e dissonâncias. O baixista Paulo Paulelli aprofunda o mergulho no modal nordestino no autoral “Baião joy”, sem versos, todo esculpido em vocalizes pela solista. Luciana retine a voz em clarividentes agudos no picotado de “Quando você vier”, do pianista Fabio Torres, em parceria com Vicente Tavares. Da própria Luciana, a admoestadora “Bem que te avisei” (“que não ia dar/ que estava tarde”), suingadíssima, promove na segunda parte um dueto da cantora com o baixo de Paulelli. Dela com o baterista Edu Ribeiro, que descortina a faixa com leves batidas em câmara lenta, é a faixa título “Cometa” (“até a lua para pra olhar/ o mundo celestial”), que Luciana esgarça na voz, antes do belo solo de piano sustentado pelo baixo meticuloso.

              Grande achado é a inclusão da pouco lembrada “Rumo dos ventos”, que emprestou o título (“A toda hora rola uma história”) ao disco de Paulinho da Viola, de 1982. Ela ganha outro significado neste álbum, realizado em um dia de ensaio e dois de gravações, em São Paulo (com a produção remota, de Los Angeles, do marido da cantora, o músico premiado Larry Klein), na virada de chave do país, em janeiro passado. Numa levada veloz e desequilibrante, Luciana embarca na Corrente eloquente: “A toda hora rola uma história/ que é preciso estar atento/ a todo instante rola um movimento/ que muda o rumo dos ventos/ quem sabe remar não estranha/ vem chegando a luz de um novo dia”. (Tárik de Souza)


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