Música

O dia em que Raul Seixas viu a Terra parar

segunda, 22 de junho de 2020

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“Tive a sorte de cruzar meu caminho com o do Raul, ainda que muito menos vezes e tempo do que eu gostaria que tivesse acontecido, a partir de 1978, pouco tempo depois do lançamento do álbum ‘O Dia Em Que a Terra Parou’, quando comecei a trabalhar na antiga WEA DISCOS, hoje Warner Music Brasil. Depois tive um outro momento com ele na Emi Odeon, quando já apresentava o início de sua doença. Raul foi um filósofo, ativista a seu modo, que escancarava verdades profundas que muitas vezes não queríamos e continuamos não querendo  ver. É por isso que a música dele não envelhece. É por isso que, até hoje, alguém grita ‘TOCA RAUL’, em shows e eventos. ‘O Dia Em Que A Terra Parou’, ‘Gita’, ‘Ouro de Tolo’, ‘Metamorfose’... Precisamos do Raul para que nosso coração não vire pedra."

(Sergio Affonso, presidente Warner Music Brasil, em depoimento ao IMMuB


O dia em que Raul Seixas viu a Terra parar

Certo dia, ninguém saiu de casa. Como se fosse combinado, todos os habitantes do planeta Terra evitaram ir às ruas. As escolas ficaram às moscas. Alunos e professores resolveram esquecer momentaneamente as lições. Até as padarias estavam fechadas. Não havia quem comprasse pão, mas também não havia pão para se vender. Nem mesmo os cristãos mais fiéis se atreveram a ir rezar na igreja. Ruas, escritórios, centros comerciais, shoppings... nada! O planeta Terra inteiro resolveu ficar em casa. 

O cenário soa familiar? Para muitos, pode ser o retrato do mundo em 2020, acuado dentro de casa por força da quarentena provocada pela pandemia do coronavírus, a Covid-19. Mas é o cenário descrito por Raul Seixas na música “O dia em que a Terra parou”

Essa música voltou à tona e está sendo constantemente relembrada por sua inimaginável semelhança com o momento pelo qual o mundo está passando agora. Afinal, quem poderia imaginar que essa letra, que antes parecia simples fruto da imaginação do Maluco Beleza, pudesse se tornar realidade? Há quem diga até que o sonho descrito por Raul no início da canção não passou de uma premonição do que aconteceria 43 anos depois. 


A canção “O dia em que a Terra parou” dá nome ao álbum lançado por Raul em 1977, trabalho de rupturas em sua carreira, por diversos motivos. Em primeiro lugar, trata-se do primeiro disco do roqueiro na gravadora Warner Music. Um ano antes, o então diretor da Philips, André Midani, foi chamado para fundar a Warner no Brasil. Ele aceitou e levou consigo uma série de ex-contratados da antiga empresa, incluindo Raul, que ainda gravaria pelo mesmo selo os discos “Mata virgem” (1978), “Por quem os sinos dobram” (1979) e “A panela do Diabo” (1989). 

De casa nova, o cantor e compositor decidiu renovar a música, a imagem e as parcerias. A capa de “O dia em que a Terra parou”, feita por Roberto Magalhães sobre foto de Ivan Cardoso, retrata Raul de terno e gravata, óculos de grau e cabelo comportado, semi-enterrado na areia. Uma imagem significativamente diferente daquela adotada por ele até então, do místico que usava cabelo comprido, roupas e fantasias absurdas, como na capa de seu disco anterior, “Há 10 mil anos atrás”


De acordo com o biógrafo Jotabê Medeiros, que escreveu o livro “Raul Seixas: Não diga que a canção está perdida” (Todavia, 2019), tratava-se de uma tentativa de literalmente enterrar sua antiga persona, ainda associada à parceria com Paulo Coelho, e cravar sua emancipação artística e pessoal. 

Sim, o disco consolidou também o fim da parceria entre Raul e Paulo, que já vinha se desgastando há um tempo. Rompido com sua outra metade, Raul foi em busca de alguém para ocupar o lugar vago e dividir a criação do novo álbum. Lembrou-se, então, do amigo com quem havia feito a música “Novo Aeon” em 1975. Cláudio Roberto Andrade de Azeredo, o tal amigo, era um professor de educação física da UFRJ que complementava a renda vendendo mocassins em feira hippie - um autêntico “maluco beleza”. Os dois compuseram juntos todas as 10 faixas que integram “O dia em que a Terra parou”

Foto: Paramount Pictures Brasil Distribuidora de Filmes/Divulgação

Para completar, Raul vivia um momento delicado em sua vida pessoal. Acabara de ser deixado por sua esposa, Gloria Vaquer, que se mudou em definitivo para os Estados Unidos a fim de cuidar da saúde da filha do casal, que sofria de escoliose grave. O mergulho cada vez mais profundo no alcoolismo também contribuiu para um estado mental e físico mais frágil. 

Talvez por tudo isso, o disco ficou repleto de canções que falam do desejo de emancipação pessoal e libertação de velhos conceitos ou opiniões formados sobre si. 

Em “No fundo do quintal da escola”, por exemplo, ele dá de ombros para as críticas e reafirma sua individualidade: “Não sei onde eu tô indo/ Mas sei que eu tô no meu caminho/ Enquanto você me critica, eu tô no meu caminho”. Em “Sapato 36”, o tema reaparece sob forma de drama filial, no discurso de um filho que não quer mais viver “apertado” pelas limitações impostas pela vontade paterna: “Quero partir sem brigar/ Pois eu já escolhi meu sapato/ Que não vai mais me apertar”. 

Já em “Eu quero mesmo”, ele confessa sua verdadeira vocação para ser cantor de “iê-iê-iê” ou de música romântica, numa espécie de retorno aos tempos de Raulzito ou de produtor de discos populares da CBS, enquanto faz um balanço de sua produção mais recente: “Por muito tempo eu sentia vergonha das coisas que eu sinto/ E disfarçando, escrevia difícil só pra complicar”.

Essa última talvez fosse efeito da parceria com Cláudio Roberto. De verve mais popular, com um estilo que preferia a simplicidade às formas rebuscadas, ele ajudou Raul a expandir os limites de sua obra, rompendo o círculo roqueiro para ganhar de forma muito mais ampla as paradas de sucesso e outras camadas sociais, que antes ele não atingia de maneira tão acentuada. 

Isso aconteceu, como também analisa Jotabê Medeiros, com “Maluco beleza”, segunda faixa do disco “O dia em que a Terra parou”. Até hoje uma das mais tocadas de Raul, essa música se tornou um fenômeno e foi cantada pelos mais diversos públicos. E com uma letra que vai ao encontro do discurso de auto afirmação de suas vontades e de sua própria identidade. Que os outros se desgastassem na tentativa da “normalidade”, ele iria ficar descansado sendo mesmo um maluco, num caminho que talvez não levasse a lugar algum, mas que ao menos fora escolhido por ele. 

Na conjuntura atual, no entanto, a música que mais chama a atenção é mesmo a que dá nome ao disco. “O dia em que a Terra parou” foi inspirada por filme homônimo de Robert Wise lançado em 1951. Produzido ainda no início da Guerra Fria, que cindiu o mundo em dois lados (também soa familiar?), o longa narra a chegada de um alienígena que visita o planeta Terra com o intuito de trazer aos humanos um pedido de paz. Numa sucessão de desventuras, o ET decide paralisar todos os meios eletrônicos da Terra para dar uma lição aos terráqueos. 

A música, curiosamente, é a que mais destoa da linha adotada ao longo do disco. Faz lembrar o Raul dos “velhos tempos”, obcecado pela cultura pop norte-americana e por letras de conteúdo fantástico e misterioso, como “Gita” e “Há 10 mil anos atrás”. Isso torna ainda mais espantosa a semelhança da música com a realidade atual. 

Mas se pararmos para prestar atenção à sua letra, é possível se agarrar a uma esperança em vez de se desesperar pelas coincidências com um cenário de ficção científica. Se a Terra já está parada, podemos ao menos torcer pela concretização dos seguintes versos: E o doutor não saiu pra medicar/ Pois sabia que não tinha mais doença pra curar

A faixa que encerra o disco também pode nos ajudar nesse intuito. Com levada de black music, “De cabeça pra baixo” descreve um espaço utópico e idealizado, uma tal “cidade de cabeça pra baixo”, que é harmoniosa justamente por sua inadequação:

"É na cidade de cabeça pra baixo
A gente usa o teto como capacho
Ninguém precisa morrer
Prá conseguir o Paraíso no alto
O céu já está no asfalto..."

Se Raul Seixas realmente previu tudo o que está acontecendo, talvez não tenha sido à toa que juntou as duas músicas no mesmo disco. Talvez tenha sido necessária a trágica paralisação da Terra para que a gente pudesse enxergar sob outra ótica o que antes estava oculto e finalmente virá-la de cabeça pra baixo, subvertê-la para que ela continue funcionando novamente, mas de forma diferente. De preferência tão pacífica quanto queria o ET do filme de Robert Wise

Talvez. Impossível saber quais mensagens Raul nos envia do passado. Impossível saber ao certo os desígnios da arte, do mistério e da fatalidade. Só o que temos hoje é o desejo de que a Terra volte a rodar o quanto antes. 

Texto por: Tito Guedes 

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