As Canções que Você Fez pra Mim

O Doce Refúgio de Beth Carvalho

sexta, 03 de maio de 2024

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Apesar da fundação do Cacique de Ramos ter ocorrido no início da década de 1960, foi só no final da década seguinte que o Cacique de Ramos chegou ao auge da forma. Em 1977, um grupo de peladeiros resolveu bater uma bolinha uma vez por semana, nas quartas-feiras, na quadra. Depois do futebol surgia o churrasco, desciam várias cervejas de casco escuro e, como consequência desse fuzuê, começava a roda de samba. Pegou! Levada ao pagode da tamarineira por Alcir Portela, ex-jogador de futebol, a “comadre” Beth Carvalho conheceu a roda do Cacique de Ramos. Aquilo ia influir por toda a vida dela. A dupla dava-se muito bem, eram amigos, gostavam de bater uma perna pelos sambas do subúrbio carioca. Apesar de não ser chegada numa bola, a botafoguense Beth se apaixonou pelo que viu e ouviu e jogou nas onze. Virou uma espécie de fiadora, ou melhor, madrinha daquele movimento todo. Em 77, Alcir vira-se pra Beth e diz, “vou te levar num lugar que você vai gostar”. E ela, “vamos nessa, onde é?”, e ele, “No Cacique de Ramos. O resto veio numa progressão fulminante! 

Porque quando eu estava naquele negócio de carnaval, que eu sempre tive, o Cacique e o Bafo eram os dois blocos mais fortes, sendo que eu frequentava o Bafo mas eu achava o Cacique mais interessante no desfile, porque tinha um negócio de tacape, tinha uma roupa de índio e tinha aquele samba (cantando) “Nesse carnaval não quero mais saber, ê, ê, de brincar com você”. Eu gostava muito desse samba e de um samba da Chiquita, irmã do Sereno, ela que já morreu, uma grande mulher, uma mulher que cantava um samba diferente de todo mundo, eu tenho a Chiquita filmada… 

A partir daí Beth Carvalho, nascida em 5 de maio de 1946, virou a madrinha do Cacique de Ramos, do bloco. Em 1980, saiu o primeiro disco do Fundo de Quintal, o lp Samba É No Fundo Do Quintal, e lá ela se tornou madrinha do Fundo de Quintal. O Disco de estreia do grupo Fundo de Quintal no qual trazia Bira, Ubirany, Jorge Aragão, Sereno, Almir Guineto, Neoci e Sombrinha, aquela turma. Eles começaram a chamar a Beth Carvalho de madrinha do Cacique, depois de madrinha do Fundo de Quintal… Depois do Arlindo, do Sombrinha, do Luiz Carlos da Vila, do Zeca Pagodinho

A instrumentação utilizada na roda era o elemento mais peculiar nessa história toda: o repique de mão, banjo e o tantã caíram no samba, ao lado do cavaquinho, do violão e do pandeiro. A nova instrumentação trouxe uma dinâmica diferente ao bom e velho samba. Saía assim, do terreiro da Rua Uranos, o ritmo para vários pagodes de fundos de quintal. O grupo Fundo de Quintal, propriamente dito, surgiu profissionalmente na passagem da década de 1970 para 1980 e tornou-se o mais importante e influente em seu campo de atuação. A primeira formação do Fundo de Quintal contou com Bira Presidente, Almir Guineto, Neoci, Ubirany, Sereno, Jorge Aragão e Sombrinha. Logo no ano seguinte, Arlindo Cruz entraria na vaga de Almir Guineto

Esse tipo reunião informal que proporcionou o nascimento do Fundo de Quintal e deu nome ao grupo (nos fundos de um velho quintal suburbano) passou a designar uma forma muito procurada de diversão popular, os “pagodes de fundo de quintal” ou, simplesmente, os “fundos de quintal”. Em tempo: A palavra pagode está presente na língua portuguesa, na acepção de “festa ruidosa”, desde o século XVI. O termo pagode ganhou, no Rio de Janeiro, primeiro, acepção de “reunião de sambistas”, que se estendeu depois às composições nelas cantadas, para então, a partir da década de 1980, designar um estilo de composição e interpretação do samba. Na acepção de festas ou festividades, desde os primeiros anos da República tem-se notícia de pagodes em casas de famílias cariocas, assim como nos terreiros das escolas de samba e em festas públicas na Penha e da Glória. Porém, a denominação ganhou força e se expandiu mesmo no Rio a partir da década de 1970, a partir dos pagodes do Clube do Samba (no Méier), Tia Doca em (Oswaldo Cruz), Pagode do Arlindinho em (Cascadura e depois na Piedade), Cacique de Ramos, dentre outros. Por uma associação meio besta, me lembrei  da sentença definitiva de Luiz Carlos da Vila: “A maior invenção do Homem é a roda. A segunda é a roda de samba”. Mas já estou divagando e, desculpe. O grupo Fundo de Quintal foi, sem sombra de dúvida, o grande responsável pela difusão do estilo. Já temos um timaço, meia dúzia de craques, um ritmo e uma madrinha. Só faltava o hino. 

Felei de Luiz Carlos da Vila e volto a ele. O samba "Doce Refugio", que acabou se transformando em uma espécie de hino informal do Cacique de Ramos, surgiu de maneira inusitada, num daqueles episódios que ressaltam a inspiração do poeta. Luiz Carlos da Vila relatou, em diversos depoimentos, que estava, um dia, tomando uma cerveja com Ubirany, embaixo das tamarineiras enormes que abrigam os passarinhos nas manhãs. Então caiu uma folha dentro da cerveja. Com a palavra, o poeta: “Não me lembro se a folha caiu no meu copo ou no dele. Aí disse o Ubirany: ‘Você não poeta? Faz uma música pra isso aí’. Qualquer coisa que acontece comigo as pessoas logo pensam que vai dar poesia, sei lá o quê”. Assim surgiu o "Doce Refugio". Que nem todos parassem para ouvir, vá lá. Mas alguém, alguém deveria parar. Um funcionário do Banco do Brasil, um soldado, um velhinho de camisa fina e emacula, uma Beth Carvalho. Para ela, era uma experiência inédita. Beth não só ouviu “Quando ele vai para as ruas \ A vida flutua num sonho real \ É o povo sorrindo e o Cacique esculpindo \ Com mãos de alegria o seu carnaval \ É o Cacique” como gravou a composição no disco "Suor no Rosto" em 1983. Fala Cacique de Ramos: 

“Sim, é o Cacique de Ramos
Planta onde em todos os ramos,
Cantam os passarinhos nas manhãs….”. 

"Suor no Rosto" faz parte de uma discografia fundamental que Beth gravou é, em larga medida, sintetiza o encontro que a cantora promoveu entre a tradição do samba urbano do Estácio de Sá e das velhas guardas de Mangueira e Portela, e a potência do novo samba carioca que estava se disseminando a partir das tamarineiras do Cacique de Ramos.


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