Música

O Fim da Perspectiva Feminina Através da Perspectiva...Masculina?

por Caio Andrade

terça, 08 de março de 2022

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Um século atrás, uma mulher participar na composição de uma música era algo de se estranhar. Se qualquer atividade musical já era vista com maus olhos quando feita por/para vagabundos, seria vista com os piores olhos possíveis se feita por/para vagabundas (e sim, uma vogal nesse adjetivo muda completamente o sentido da palavra e coloca uma carga muito mais cruel nela dependendo do gênero). Nesse Dia Internacional da Mulher, vamos investigar um pouco em que período as mulheres começaram a escrever suas próprias histórias na MPB.

O que se produziu em boa parte do século passado, quando começou a indústria fonográfica no Brasil, foi a perspectiva de homens a respeito dos mais diversos temas, até mesmo sobre a própria ótica da mulher. Por exemplo, em Marido da Orgia, samba de Ciro de Souza gravado em 1937 por Aracy de Almeida, temos a perspectiva de um homem sobre a perspectiva de uma personagem feminina que conta em primeira pessoa os abusos que sofre do companheiro. 

Você não deve me tratar assim

Porque eu não estou acostumada

E posso até achar ruim

Você só chega em casa alta madrugada

E se por acaso não estou acordada

Você fica enfezado e quer me dar pancada


Eu já procurei, já procurei o meu advogado

E ele respondeu que o caso é encrencado

Marido da orgia não tem o direito

De bater numa mulher que se dá o respeito

Você já abusou da sua autoridade

E eu não estou disposta a tanta maldade

Numa espécie de crônica e talvez de denúncia (depende muito da intenção do autor), a letra começa com uma mulher impositiva, que se propõe a enfrentar aquela realidade. A princípio, ela parece estar olhando bem diretamente para o marido e dizendo todas as verdades que ele precisa ouvir. Entretanto, se reparar sobretudo na segunda estrofe, a letra continua reiterando a ideia de que uma mulher “deve se dar ao respeito” e que o homem teria alguma autoridade sobre ela. Ora, se ele não fosse da orgia ou se ela não se desse ao respeito, estaria tudo bem a violência doméstica?

Outro exemplo, mais a frente, é Maria Moita, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, gravada em 1964 por Nara Leão e regravada por inúmeros outros artistas. Com uma letra forte, traz numa espécie também de crônica a mesma temática da denúncia da música anterior. Lyra disse que essa música seria um tipo de “primeira canção feminista do Brasil”. A ideia de crítica daquela realidade e de colocar em primeiro plano a figura feminina é importante e louvável. Entretanto, não parece ser um pouco de presunção ter 2 autores homens criando a primeira música feminista do Brasil? Novamente, cria-se mais do mesmo nesse sentido.

Capa do álbum Nara Leão (Elenco, 1964) 

É bem verdade que o contexto em que essas músicas foram gravadas é totalmente diferente dos dias atuais. Alguns julgamentos, por mais necessários e relevantes que sejam, podem se tornar até anacrônicos dependendo do quão longe forem. Se pensar no contexto, na quantidade de compositoras que existiam, no poder que a mulher tinha na sociedade, entre outros apontamentos, muita coisa explica, mas não justifica, a letra dessas canções. Só não podemos exigir, também, mais do que essa época poderia nos dar.

Como dito anteriormente, desde 1902, com a primeira gravação no país, demorou-se muito tempo para ver mulheres na primeira prateleira das composições, retratando com propriedade, em primeira pessoa, os problemas que elas enxergavam, e não que os homens diziam ou achavam que elas enxergavam. Dora Lopes, Maysa e Dolores Duran (que, inclusive, eram amigas) são alguns dos primeiros nomes que tiveram um relativo ou grande destaque na parte da autoria – mas isso só lá nos anos 1950. É provável que anteriormente tivéssemos também outros nomes, mas que foram apagados com os anos.

Pode-se afirmar que esse espaço reivindicado por elas cresceu de maneira considerável na segunda metade do séc. XX. A partir daí, é possível citar dezenas de nomes que surgem como Dona Ivone LaraJoyce Moreno e Sueli Costa, depois Fátima Guedes, Marina Lima, Cássia Eller, Adriana Calcanhotto e muitas outras. De maneira mais ou menos intensa, direta ou indiretamente, elas abrem caminhos para uma nova geração de mulheres compositoras  nesse novo milênio, como Pitty, Maria Gadú, Céu, Marina Íris, Liniker...

Outros tempos, outros temas. Mais do que uma crítica ou denúncia, várias – se não, todas – dessas artistas estão engajadas com pautas sociais que enfrentam, sendo porta-vozes de diversas outras mulheres. Até quem era das “antigas” se inclui nesse recorte. Sendo assim, nesse dia 8 de março, no Dia Internacional da Mulher, qual grande cantora-compositora você vai dar ouvidos?

 


Caio Andrade é graduando de História da Arte na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ) e Assistente de Pesquisa e Comunicação no Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) desde 2020Grande apaixonado por samba, pesquisa sobre o gênero há mais de uma década, além de tocar em rodas e serestas no Rio de Janeiro.



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