A Palo Seco

O mecanismo da corrosão: sobre ocorrem as transformações musicais

quinta, 30 de dezembro de 2021

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As transformações estão em todo canto. Há quase um século, com a popularização dos meios de comunicação de massa, basta virar a esquina para dar de cara com alguma nova possibilidade musical. As formas como elas ocorrem me parecem, porém, quase sempre mal interpretadas.

Em geral porque, no século XX, foi se intensificando o ritmo dessas transformações, enquanto se pensavam movimentos artísticos a partir de correntes e/ou gerações datadas e situáveis. E é claro que, se esse pensamento possui um fundamento pedagógico, ele cria apenas um grande quadro histórico com infinitos elementos. Um zoom em qualquer movimento artístico mostra que os ruídos nessa leitura são muitos, e que eles se confundem imensamente – deixando tudo mais divertido.

O mecanismo que permite melhor olhar esse quadro é justamente o de acervos como o do IMMuB, que fazem com que consigamos ter um panorama geral e a capacidade de se aprofundar em cada um dos momentos musicais da nossa música. E o que esse aprofundamento nos mostra?

Me parece que as transformações ocorrem menos pelo rompimento brusco do que por acontecimentos que causam pequenos tremores nas tendências que estão ocorrendo no momento. Mais, penso que quando esses momentos de ruptura existem, eles costumam estar ligados a uma tendência represada (a tropicália possui esse fator determinante para a sua estética, por exemplo, em relação à introdução de um repertório e instrumentos musicais que estavam sendo rejeitados à época). 

Ou então, mais comum, eles acompanham movimento avassaladores exteriores à música, como a migração nordestina para o sudeste (é o caso da formação samba e do baião) ou transformações tecnológicas (como a jovem guarda e as canções da era do rádio), e, assim, adquirindo impacto imediato.

Porém, essa é a exceção. A regra é a transformação gerada pelos micro-acontecimentos que pouco a pouco se multiplicam, corroendo o que já está estabelecido. Detalhe por detalhe, algumas iniciativas são capazes de gerar efeitos interessantes – e a constante proliferação destes é o fato discreto mais encantador no sentido de provocar mutações na música popular.

Foi assim quando Carlinhos Brown inseriu a estrondosa bacurinha no axé baiano, por exemplo, incomodando os ouvidos mais domesticados e reorganizando a formação do gênero. Ou então quando Naná Vasconcelos colou cordas de piano Steinway no berimbau, ampliando as suas possibilidades.  Dois exemplos de pequenos movimentos que foram capazes não de revolucionar um gênero – mas de transformar, em um pequeno gesto, o seu caminho.

Voltei a pensar nesse assunto quando ouvi o sucesso que a Marina Sena estava fazendo com seu hit “Por Supuesto”. Em geral, não ouvi o sucesso como algo excepcional – senti, antes de tudo, a alegria em ver os holofotes se direcionarem para o interior de Minas Gerais. Mas, para além disso, a sua voz metalizada, inesperada, provocou algum ruído no mainstream, entre algoritmos e playlists, causando algum tipo de necessidade de se parar para pensar. 

É justamente o tipo de mecanismo muito delicado de corrosão, de pequena modulação que abre alguma porta ou, no mínimo, cria um bug, no sentido computacional: um susto que abre temporariamente um momento de reflexão, que, em arte, é sempre bem vindo.


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