MPB de A a Z

O poetinha que era um poetaço

sábado, 12 de outubro de 2019

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“O morro não tem vez/E o que ele fez/Já foi demais/Mas olhem bem vocês/Quando derem vez ao morro/Toda a cidade vai cantar.”

Os versos acima, com cara de Zé Keti, estilo de Candeia e musicalidade de Cartola ou de Paulinho da Viola, são de Vinicius de Moraes (O morro não tem vez), aniversariante de outubro (nascido em um dia 19, no ano de 1913), que foi diplomata, boêmio, poeta e um dos mais ecléticos letristas da Música Popular Brasileira. Com seus inúmeros parceiros – que em comum traziam a marca de excelentes músicos e instrumentistas, como Tom Jobim, Baden Powel, Carlos Lyra e Toquinho – fez canções falando do morro, do retirante nordestino “comendo gilete em Copacabana”, da mais  infinita paixão, da bela garota que passa a caminho da praia, das preguiçosas tardes baianas, da felicidade, do amor demais, da infelicidade, da saudade, da dor- de-cotovelo, da bênção, do prelúdio, dos sambas para a namorada às marchas das quartas-feiras de cinza.

Vinicius ressuscitou a parceria, que andava fora de moda, a necessidade do músico sem muita intimidade com a palavra se juntar a um poeta em busca da complementação da obra de arte. Dos primeiros sucessos ao lado de Tom Jobim na década de 50, onde surgiram pérolas como Garota de Ipanema, Se todos fossem iguais a você, Chega de saudade e Eu sei que vou te amar, até o casamento com Toquinho, consolidado com o samba Tarde em Itapoã, ele firmou no panorama da MPB uma das maiores vocações de letrista que já se viu.

O poeta, cronista, dramaturgo, compositor, crítico de cinema, advogado, diplomata, boêmio e cidadão do mundo Vinicius de Moraes nasceu Rio de Janeiro, mesma cidade onde morreu em 1980. Consta que era um menino muito bonito. Tinha olhos verdes, “talvez ausentes, mas determinados como se vissem logo adiante um grande dever a cumprir e o tempo fosse pouco”, como declarou certa feita sua irmã mais velha, Laetitia. E bonito o poeta foi a vida inteira, de corpo e alma, o que justifica o inacreditável sucesso que fez com as mulheres, que o levou a inúmeros casamentos.  De família de classe média, Vinicius teve infância sem dificuldades, morou em diversos bairros da cidade e estudou em bons colégios, até entrar para a Faculdade de Direito e concluir o curso. Bom aluno e bacharel preparado, aos 30 anos de idade foi aprovado no disputadíssimo concurso do Itamaraty. Paralelamente à carreira diplomática, escrevia e publicava poemas em livros e em suplementos literários, além de exercer a crítica de cinema em jornais. A estreia na Música Popular Brasileira só aconteceu em 1953, quando o poeta tinha 40 anos, e já em excelente companhia: tornou-se parceiro de Antônio Maria ao escrever a letra para o samba-canção Quando tu passas por mim. A música foi gravada no mesmo ano por Aracy de Almeida, pouco depois por Dóris Monteiro e na década de 90 por Olívia Byington.

Vinicius foi também dramaturgo de relativo prestígio. A peça "As feras", de sua autoria, foi um agito em temporada baiana na década de 1970. Mas o primeiro grande estouro de sua produção teatral foi "Orfeu da Conceição", que estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1956, antes de virar filme em produção internacional. Entre outras felicidades, Orfeu ofereceu a Vinicius de Moraes a oportunidade de conhecer aquele que veio a ser o seu parceiro mais constante e ao lado de quem realizou os momentos mais marcantes de sua obra: Tom Jobim. A peça seria musicada por Vadico, parceiro de Noel Rosa, que por motivos pessoais não pôde aceitar a empreitada. Muito amigo de Vinicius, o jornalista e pesquisador Lúcio Rangel recomendou ao poeta o nome de um pianista iniciante “que tinha muito jeito para a coisa”. Os artistas que se conheciam de vista foram formalmente apresentados por Lúcio no Bar Villarino e de lá pra cá foi o que se viu e ouviu: Chega de saudade, A felicidade, Eu sei que vou te amar, Canção do amor demais, O morro não tem vez, É preciso dizer adeus, Se todos fossem iguais a você e, last but not least, Garota de Ipanema, entre tantas outras.

Em meio à efervescência política dos anos 60, Vinicius de Moraes conheceu o revolucionário Carlos Lyra, compositor de violão refinado e idéias definidas, talhadas no trabalho de conscientização popular desenvolvido junto aos membros dos Centros Populares de Cultura, os CPCs da União Nacional dos Estudantes (UNE). Juntos fizeram o Hino da UNE, Pau de arara (grande sucesso de toda a carreira de Ari Toledo), Minha namorada, Primavera, Sabe você, Marcha da quarta-feira de cinzas, Samba do carioca e muitas outras preciosidades. 

Fértil e produtivo, a usina de letras que era Vinicius de Moraes esbarrou ainda, nessa época, com o virtuose do violão Baden Powell, compositor de mãos-cheias, deslanchando uma nova fornada de grandes sucessos da MPB. Da união dos dois vêm Canto de Ossanha (que um dia teve interpretação apaixonada de Maysa), Samba em prelúdio, Apelo e Samba da benção, para citar os mais conhecidos.

A mais profícua, duradoura e popular parceria do múltiplo Vinicius de Moraes foi travada com Toquinho, músico bem mais jovem do que o poeta e que começou no início dos anos 70 uma promissora carreira de melodista e arranjador. Foi Chico Buarque quem, ainda durante o exílio na Itália, convenceu Vinicius da necessidade de conhecer o trabalho de Toquinho tão logo chegasse ao Brasil. Ao lado de Toquinho, Vinicius não só soltou sua escrita, com a feitura de letras o mais rasgadamente popular, como botou para fora sua enrustida porção de cantor e começou a se apresentar em shows por todo o Brasil e até no exterior. Fizeram juntos dezenas de canções, nem todas primando pelo rigor formal e estético de outras parcerias do poeta, mas há de se destacar pelo menos algumas obras que tiveram numerosas regravações: Regra três, Sei lá (A vida tem sempre razão), Samba da volta, Testamento e Tarde em Itapuã.

Saravá, poeta!


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