A música de

O povo canta: 80 anos de Luiz Ayrão

por Daniel Saraiva

terça, 22 de fevereiro de 2022

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Nascido e criado no bairro Lins de Vasconcelos, zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1942, o cantor e compositor Luiz Ayrão completou 80 anos nesse 19 de janeiro. Partindo de suas memórias narraremos aqui parte da trajetória desse artista que comemora sua oitava década. Para isso mobilizaremos entrevistas que o cantor concedeu para o jornal O Globo e como fonte central do texto utilizaremos a entrevista que o compositor concedeu ao site A Música de. História Pública do Brasil, dividida em quatro partes foi publicada no portal e canal do YouTube em dezembro de 2020.

Filho único, seu pai, além de militar, era músico e compositor: “homem alto, forte, amigo, companheiro, era o meu ídolo”, relembra o cantor. Ayrão destaca que a sua família era muito musical e ligada à arte. Após a morte do pai devido a um aneurisma, o compositor afirma que fez de tudo um pouco, de engraxate a vendedor de bebidas, mas nunca deixou de estudar, inclusive contando com bolsa de estudos em alguns momentos (AYRÃO, 2020).

Foto: Luís França / Divulgação

Desde muito cedo começou a compor, inicialmente escondido. Aos 6 anos começou a tocar piano com o professor Sílvio Souza, mas lembra em entrevista para o jornal O Globo que a timidez o prejudicava no contato com os outros artistas (TARDELLI, 1988). 

O estudo esteve presente na vida do artista, cursou o primeiro grau no Colégio Lafayette (Tijuca), em 1966 colou grau na Faculdade Cândido Mendes, onde cursou Direito. A música era então apenas um hobby, “pois o sonho de ser tornar advogado falava mais alto”. Em entrevista para O Globo em 1988, Luiz Ayrão lembra que o palco estava distante naquela época e que ainda acreditava que estar envolvido com a música poderia prejudicar a carreira como advogado, uma vez que o preconceito em relação ao mundo das artes ainda era forte (O GLOBO, 1988). Com 16 anos e já órfão de pai, lembra que “A música foi para mim a minha bengala, foi o meu psicólogo, foi meu psicanalista”, mas a timidez ainda era grande. A mãe que havia ficado responsável por sua criação tinha “horror” que Ayrão pudesse se tornar um músico profissional, pois na época as profissões ligadas às artes eram associadas à boêmia e, depois, eram uma interrogação, já que não havia nenhuma segurança de retorno financeiro (AYRÃO, 2020).

Roberto Carlos morava em uma rua próxima da casa de Luiz Ayrão e um amigo da época, Nélio, contou que morava ali perto um cantor vindo de outro estado, Espírito Santo, que começava a trilhar a carreira artística, e foi nessa época que se conheceram. Em 1963, a canção Só Por Amor, de Ayrão, foi gravada por Roberto Carlos, sendo lançada em um compacto duplo e no Long Play Splish Splash. A partir daí, o compositor começou e ter espaço na CBS e a fazer letras para outros artistas da gravadora. Em 1965, a canção O Fugitivo, parceria com Ercio Roberto, foi gravada por Renato e Seus Blue Caps. As canções de Luiz Ayrão continuaram a ser gravadas por artistas categorizados que futuramente seriam considerados integrantes da Jovem Guarda como o Trio Esperança. Roberto Carlos gravaria novamente o compositor: Nossa Canção (1966) e Ciúme de Você (1969). Nesse momento, ser gravado por Roberto Carlos já era certeza de visibilidade e retorno financeiro. 

Luiz Ayrão ao lado de Roberto Carlos, primeiro cantor a gravar uma composição sua, "Só por amor" / Divulgação. Reprodução: Acervo O Globo

Nesse período de compositor, Luiz Ayrão estava ainda na Universidade e depois de formado prestou concurso para o Banco do Estado da Guanabara. Em suas memórias, ele lembra que era um concurso difícil, mas a remuneração era muito boa. O artista lembra que “O morro do Cristo Redentor dividia a elite da zona Norte, não havia ainda o túnel Rebouças”, então, ir para a zona Sul era um longo caminho. “Para você ir ao bairro da elite, tinha que atravessar a cidade toda, pegar o bairro do Flamengo, Botafogo, passar pelo túnel, aí chegava em Copacabana, outro mundo, outro mundo Copacabana”. Para colocar sua canção no festival Brasil Canta no Rio, da TV Excelsior, o artista partiu para o Teatro Excelsior, zona Sul da cidade, onde faria a inscrição. Entregou a fita com as duas canções e foi até Ipanema. Tempos depois, andando pelo bairro com sua pasta de advogado, ele foi parado na rua. Reconheceu na hora aquele jovem que o parava, era Nelson Motta, que perguntou se era ele quem havia feito a inscrição no festival, e que o estavam procurando para que ele indicasse intérpretes para suas canções (AYRÃO, 2020).

Uma das canções inscritas no festival era Liberdade Liberdade. Como a música era engajada e seria considerada subversiva, o compositor não achou intérprete para ela. A outra, ele havia conseguido que um trio defendesse. Já desanimado, Ayrão foi avisar para o maestro retirar a canção por falta de intérprete quando o maestro indicou que ele mesmo defendesse a canção, pois ele cantava bem. No dia da apresentação, o compositor se lembra do nervosismo: “como é que eu vou cantar, meu Deus, só dei dois ensaios, eu não sou cantor, minha nossa senhora, o que eu vou fazer?”. Depois do festival, Rildo Hora lhe entregou um cartão e disse “Você me procura na rua Correa Dutra, 52, na segunda-feira”. Chegando lá no dia e hora marcados, o convite era para que ele gravasse pela RCA Victor um compacto simples; de uma lado a música polêmica do festival e para o outro, perguntaram se Luiz Ayrão tinha alguma letra parecida com o já sucesso Nossa Canção. Foi assim que Ayrão compôs Canta Menina.  A música polêmica e engajada foi rechaçada na maioria das rádios. Marcos Baby Durães, que trabalhava na rádio nacional resolveu então tocar o outro lado do compacto. Ayrão lembra que para divulgar a canção fez muitos shows de graça e até apresentações em circo. Em contrapartida, sua canção seria tocada nas rádios. E assim, lembra Luiz: “aí eu virei cantor” (AYRÃO, 2020).

A música começava a ocupar um lugar maior na vida profissional do cantor e compositor e isso começou a atrapalhar seu trabalho no Banco do Estado. Entre 1968 e 1972 o artista gravou quatro compactos simples pela RCA Victor. Nos primeiros anos ele chegou a tirar uma licença sem vencimentos do Banco se para dedicar à carreira artística, mas, com a esposa grávida, ele voltou. “Voltei e me jogaram num lugar horroroso”; “Eu comecei a perceber que eu tinha uma missão a cumprir, uma missão que podia ser cumprida pelo meu pai, mas não foi”

Essa missão era para ser cumprida pelo meu avô, era para ser cumprida pela minha avó, que tocava violão e cantava, pelo meu pai, pelo meu tio, pelo outro tio, eu tenho uma missão. Aí eu comecei a perceber que eu tinha recebido uma bênção (AYRÃO, 2020).

Antes de abandonar o serviço no Banco, Luiz Ayrão teve uma decepção na RCA Victor, “que não lhe permitiu alcançar voo mais alto do que sonhava para sua carreira”. Recém casado, estava descontente com a trajetória na gravadora e amigos como Roberto Cavalier, Rildo Hora e Romeu Nunes o incentivaram a não desistir (O GLOBO, 1988).

Foi então que o artista migrou para a Odeon. Lá ele se tornaria um dos grandes vendedores de discos e gravaria vários sucessos. O primeiro Long Play foi lançado em 1974, com sete das doze faixas autorais. Entre os compositores de outras faixas estão Sidney da Conceição e Mamão, figuras ligadas ao samba. O jornal O Globo, em uma resenha, destacou que a obra fonográfica marcava a passagem “da chamada linha da Jovem Guarda para uma posição mais definida dentro da música popular brasileira”. As músicas de sua autoria tinham “nível satisfatório”, que só podia significar uma vivência “intima com o samba do povo e sua maneira simples e direta de dizer as coisas”, e ainda: “o auditório ficou longe, o compositor ganhou as ruas”; por fim, o texto frisa que “a porta está aberta para Luiz Ayrão” (O GLOBO, 1974). 

Foram dez LP´s lançados durante o tempo de contato com a Odeon. Nesse período, muitas de suas canções se tornaram sucesso nacional como Bola Dividida (1975), Mulher à Brasileira (1977), A Saudade que Ficou (1979) e Águia na Cabeça (1983). 

Veio o terceiro disco, aí eu fui ficando, mudei para São Paulo. Chegou aqui, minha mãe faleceu, foi fazer uma cirurgia e faleceu. Foram anos de fazer 30 shows num dia, porque não tinha como hoje esse aparato todo. Eu fazia um show num dia, no dia seguinte estava em outra cidade, porque você chegava e tinha um clube e o clube tinha um baile, você entrava, usava a aparelhagem do cara que estava no baile e fazia um show. Todo mundo ganhava: o cara do conjunto, porque ele tinha o local de trabalho; porque ia um cantor de sucesso; eu ganhava porque tinha conjunto de baile e a minha banda usava os instrumentos, não os instrumentos, o som; e o clube enchia porque você era sucesso. Então eu comecei a correr o país inteiro, porque o Moacir Machado, quando disse que eu tinha que abandonar a carreira[de bancário e advogado], o diretor da Odeon, ele disse: “olha, você não pode regatear show, se tiver um show num puteiro lá no Acre, você vai, você vai a todo lugar, porque você tem três anos para ganhar dinheiro. Como você é um cara muito correto, muito... você vai ficar cinco anos, aproveita esses cinco anos, corre atrás” (AYRÃO, 2020).

Foram muitos anos mais de sucesso do que o que previa Moacir Machado. Luiz Ayrão conta que investia o dinheiro que ganhava na música em negócios. As vendas de disco lhe renderam seis discos de outro e dois de platina. Casado com Mercedes e pai de três filhos, Vladimir, Bianca e Natalie, o artista tinha a preocupação de deixar a família estabilizada, uma vez que havia largado a vida estável de funcionário público e de advogado para seguir carreira artística. 

Depois do fim do contrato com a Odeon, Ayrão gravou pela Copacabana, Continental e por gravadoras menores como a Flama, Moveplay, Mac Records. E continuou fazendo shows pelo Brasil.

Foi um dos artistas entrevistados para o livro Eu Não Sou Cachorro Não (2002) do historiador e jornalista Paulo César Araújo, livro que até 2010 já estava em sua sétima edição e é responsável pelo primeiro passo para corrigir uma problema histórico: o apagamento da história de cantores e compositores ligados a uma vertente mais popular da música brasileira e que não tiveram suas trajetórias rememoradas, seja em trabalhos jornalísticos, seja em pesquisas acadêmicas. 

Paulo César Araújo divide os artistas por ele pesquisados em três grupos, o primeiro composto por artistas como Waldik Soriano, Nelson Ned e Claudia Barroso, intérpretes de bolero que seguem a tradição e influência hispânica, presente no Brasil desde a década de 1940. Um segundo grupo tem como representantes Benito Di Paula, Wando e Luiz Ayrão que trilham a linha do samba ou “samba-joia”, forma pejorativa com que eram taxados. Por fim, no terceiro grupo, segundo Paulo César, estaria a maior parte dos artistas pesquisados, os representantes do ritmo balada, continuadores do ritmo romântico consagrado por Roberto Carlos e a turma da Jovem Guarda na década de 1960, entre os quais Paulo Sérgio, Agnaldo Timóteo e Evaldo Braga. Segundo Paulo César Araújo “ essa geração de artistas “cafonas” que se expressou basicamente através dos três gêneros musicais já bastante testados e consolidados no gosto do público ouvinte da rádio e de discos” (ARAÚJO, 2010, p.19). 

Luiz Ayrão passou a interpretar suas canções depois que cantores, temendo represálias de militares, se recusaram a cantar sua música em festival (23/06/1982) / Divulgação. Reprodução: Acervo O Globo

O livro nos ajuda a observar um grupo de artistas até então pouco pesquisados e abordados; além de permitir ver que outros artistas - não os pertencentes à sigla MPB - tiveram suas obras censuradas. No caso de Luiz Ayrão, Paulo César traz os casos de censura de canções como Meu Caro Amigo Chico e Treze Anos, além da maneira como o artista conseguiu resolver essa questão. A canção Treze Anos, por exemplo, teve seu nome alterado para O Divórcio, pois assim não pareceria uma crítica aos treze anos da ditadura militar, mas sim a lamúria de um casamento (ARAÚJO, 2010, pp.120-126).

Ao ser perguntado sobre a questão da “música brega”, Ayrão destaca que não é esse o tipo de música que ele faz, chama atenção para canções como Nossa Canção e Porta Aberta, de sua autoria e que não poderiam ser enquadradas no possível gênero. Destaca também o sucesso e importância do livro, mas comenta que “acabei indo no bolo” e que chegou a comentar com o autor “Eu sou um sambista, sou um cara que faz música brasileira, faço música de qualidade, faço música de nível, você mesmo sabe”. Após o livro, Ayrão conta que aconteceu de pessoas, entrevistadores, associarem sua obra ao repertório brega.  Sobre ser um cantor de sucessos populares ele disse 

Eu falei no começo da nossa conversa que a cada disco você tem que vender mais. E eu, como abandonei tudo, a advocacia, o magistério, meu emprego no Banco do Estado, levei minha mulher também num risco danado, não sabia o que iria acontecer, eu dizia: “Bom, eu tenho que ter uma música popular, eu tenho que ter uma música para vender”. O cara dizia para mim: “Luiz, o disco tem que sair da prateleira, o cara tem que saltar do ônibus, entrar na loja, pegar 40 reais e levar teu disco para casa, senão você está fodido”. Então eu fazia uma música popular para ela levantar o disco, mas no meio do disco estavam as obras primas, as obras que eu sabia que não iam vender (AYRÃO, 2020).

Ele comenta que a censura o vetou por temas políticos, enquanto no caso de outros artistas apresentados no livro a censura incidia mais no âmbito moral. Ao ser perguntado com qual grupo ele se identificaria, o cantor citou nomes como de João Nogueira, Roberto Ribeiro e Monarco. Na entrevista, comenta algumas canções que tinha gravado e que saíram no EP Um Samba de Respeito (2019), onde, em todas as faixas, ele conta com participações como de Alcione, João Nogueira, Monarco, Zeca Pagodinho e Xande de Pilares. Luiz Ayrão evidencia sua ligação e admiração pelo samba.

Ao finalizar a entrevista para o site A Música de, o cantor rememorou suas décadas de trajetória. Questionado sobre como ele gostaria de ser lembrado na história da música brasileira, respondeu:

Eu gostaria de ser lembrado como Dorival Caymmi, um compositor popular, de bom nível, e um cantor que fez muitos amigos, passou incólume por esse ambiente tão, às vezes... como eu posso te dizer? É um ambiente que cria personagens, às vezes, você é obrigado a fazer um personagem, você deixou de ser o artista e faz um personagem, o cara que gosta de cerveja pra chuchu, por exemplo. Eu fui muito respeitado pelos meus amigos todos, talvez pela minha escolaridade, meu comportamento sempre muito correto, nunca faltei num show, nunca destratei nenhum fã, nunca fui capaz de fazer uma indelicadeza (AYRÃO, 2020). 

Luiz Ayrão continua compondo, fazendo shows e participando de projetos especiais, como fez em 2019 ao cantar Como é que vai ficar, no show de homenagem a Martinha que foi transformado em disco. A memória do artista nos ajuda e rememorar parte da história da música brasileira que, por vezes, não é recontada. O compositor sabe da importância da sua trajetória, do caminho trilhado e da relevância de contar sua história. Ao completar 80 anos, Luiz Ayrão surge como um artista da nossa música que merece ser reconhecido pela obra e redescoberto pelas novas gerações. 



Daniel Lopes Saraiva: Historiador, mestre em História pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e doutor em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), onde desenvolveu pesquisa sobre a música nordestina nos anos 1970 e 1980.


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