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O que não tem censura nem nunca terá – o duelo de Chico Buarque com a repressão política

sexta, 14 de junho de 2024

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Censura rima com ditadura – e não por acaso. O primeiro departamento de Censura do país foi inaugurado em 1934, pelo Estado Novo de caráter fascista, do ditador Getúlio Vargas. Era o famigerado DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) como ficaria mais conhecido, após algumas mudanças de siglas. Entre outros absurdos, perseguia-se sambistas que pregavam a malandragem ao invés do trabalho. O que fez os compositores malandros Wilson Baptista e Ataulfo Alves botarem nos trilhos um certo regenerador “Bonde São Januário”. O que “leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”. Em cartaz no Cassino da Urca, a dupla caipira humorística Alvarenga e Ranchinho caricaturava o ditador e ia lustrar banco de espera das delegacias. Até que o populista Getúlio percebeu que era mais lucrativo ter críticos simpáticos. Os recebeu no Palácio e os liberou das detenções noturnas. Outros arreganhos posteriores da censura importunaram da ingênua libidinagem de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, propagada por Jorge Veiga no carnaval de 1947, (“Que me importa que a mula manque/ o que eu quero é rosetar”) ao oportunista “Menestrel Maldito” Juca Chaves que, entre afagos e farpas, entronizou Juscelino Kubitschek, como o “Presidente bossa nova”.

Mas a partir do golpe militar de 1964, o jogo passou de amistoso a bruto. Chico Buarque levou a primeira canelada ainda aos 22 anos, com sua satírica “Tamandaré”, onde debochava do fato do almirante de tantas glórias na Marinha ilustrar a nota de um cruzeiro, a de menor valor na época. Por conta do desrespeito ao insigne militar, a música, incluída num show com a atriz Odete Lara e o conjunto MPB4, foi censurada, mas Chico se defendeu nos jornais. “A música não ofende a ninguém, porque ofensivo ao Almirante é sua efígie na insignificante nota de um cruzeiro”. A saga do compositor entre 1966 e 1987 está decantada em minúcias e densa pesquisa no livro “O que não tem censura nem nunca terá – Chico Buarque a repressão artística durante a ditadura militar” (Editora L&PM), do jornalista gaúcho Márcio Pinheiro, autor entre outros do emblemático “Rato de redação – Sig e a história do Pasquim” (Matrix 2022). O hebdomadário humorístico/politico carioca, aliás, foi uma das fontes vasculhadas pelo autor, junto com coleções de o Globo, Jornal do Brasil e toda a obra do artista, que desde a década de 1980 afastou-se da imprensa e não concede entrevistas. 

No livro, Márcio faz desfilar lado a lado a história do compositor - que se tornaria unanimidade nacional a partir do estouro da álacre marchinha “A banda” - e a resenha política do país, com o recrudescimento da repressão e da censura. A proibição da montagem da peça “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams, estrelada pela atriz Marta Fernanda (filha da poeta Cecília Meirelles), em fevereiro de 1968, redundou num movimento da classe artística contra a censura, incluindo Chico Buarque entre seus participantes. Ele logo seria mais um alvo dos catões por sua peça “Roda viva” do mesmo ano, onde fustigava a indústria de moer carne do show bizz, de que ele logo tomou consciência após os primeiros sucessos. A música título foi uma das principais protagonistas do Festival da Record de 1967, ao lado de “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinan, “Alegria alegria”, de Caetano Veloso e “Domingo no parque”, de Gilberto Gil. Mas a peça, encenada por José Celso Martinez Correa, além da censura teve atores atacados pelos paramilitares do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Era ao mesmo tempo a detonação definitiva do perfil inicial do compositor. “Eu nunca disse a ninguém que era bonzinho, eles é que criaram essa imagem”, declarou em entrevista.

Com a oficialização do fim das liberdades através do AI-5 (Ato Institucional nº 5) do regime militar, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e tiveram que partir para o exílio. Também para fora do país embarcou Geraldo Vandré, autor do hino de protesto “Caminhando” ou “Pra não dizer que não falei das flores” (“há soldados armados amados ou não/ todos eles perdidos de armas na mão/ no quartel lhes ensinam antigas lições/ de morrer pela pátria e viver sem razão”), derrotado pela canção do exílio “Sabiá”, pelos intensamente vaiados Tom Jobim e Chico Buarque. O impedimento da vitória de Vandré foi ordem expressa do alto Comando do i Exército, segundo relatou em sua biografia Walter Clark, então diretor da TV Globo, palco do FIC (Festival Internacional da Canção), onde ocorreu a disputa, em 1968. Só este episódio já dava uma ideia de como a cultura incomodava a até a cúpula dos tiranos.

Embora sem uma perseguição formal, Chico Buarque também auto exilou-se. Escolheu a Itália, onde havia morado na infância e conhecia a língua. Conviveu com Elza Soares e o jogador Garrincha. Tentou empreender uma carreira que desaguou numa turnê com a diva americana do jazz cabaré, Josephine Baker, já no ocaso. Era imperioso voltar e enfrentar a ditadura. Foi o que Chico fez, desembarcando no aeroporto do Rio, após 14 meses, recepcionado por uma verdadeira comitiva formada por Paulinho da Viola, Trio Mocotó, MPB4, Altamiro Carrilho, e a atriz Betty Faria que desfraldou uma bandeira do Fluminense, time do homenageado, enquanto era executada “A banda”. Chico estava seguindo os conselhos do amigo e parceiro Vinicius de Moraes: “Quando voltar, volte fazendo barulho”.

Mais que barulho foi o estrondo provocado pelo espetacular samba “Apesar de você” (“você vai se dar mal/ eticetera e tal”), lançado logo em seguida, em 1970, um petardo contra o governo Médici que os censores só descobriram não ser uma desavença de namorados após o disco ter vendido 120 mil cópias. Oficiais da polícia invadiram a sede da gravadora Philips, no Rio, e destruíram o estoque restante do disco. Houve punições na censura e o órgão elegeu Buarque seu inimigo número 1. Ele seria o alvo preferido, marcado de forma implacável tendo muitas de suas letras rejeitadas pelas mais absurdas justificativas.

Em 1973, a peça “Calabar, o elogio da traição”, parceria com o cineasta moçambicano Ruy Guerra teve a encenação proibida (e até o título vetado, daí o disco ficou “Chico canta”), mas a trilha infiltrou-se no repertório de Chico e outros intérpretes, incluindo o antológico show/disco realizado em parceria com Caetano Veloso na Bahia. Entre elas, “Barbara”, uma cena homo afetiva feminina, da qual a sonoplastia foi obrigada a abafar algumas palavras. “Cálice”, parceria de Gilberto Gil e Chico, por seu refrão título anfíbio, teve a execução pateticamente impedida no show “Phono 73”, numa orquestração paranoica de microfones desligados.

Um novo e espetacular drible do craque do time de futebol Polytheama que fundou, criou sede e dirige, veio a seguir. Com o repertório quase todo vetado, ele teve ideia de lançar o álbum “Sinal fechado”, só com composições alheias (a começar para faixa título, de Paulinho da Viola). Exceto uma certa “Acorda amor” (marcado pelo refrão: “chame o ladrão!”) dos compositores Julinho da Adelaide e Leonel Paiva. Escudada nestes nomes verossímeis (com direito a biografias fictícias na imprensa) a música passou, mas era do próprio Chico. O que provocou novas punições no órgão censório (que Márcio biografa com maestria, junto com o entorno musical da época) e uma passagem do compositor para outro patamar persecutório. A partir do episódio, a Censura passou a exigir cópia do RG e CPF dos autores, impossibilitando novas pegadinhas.  

Num tour de force de alta densidade, Márcio acompanha também as trajetórias de outros artistas próximos e as várias facetas do biografado, autor ainda de trilhas de cinema como “Quando o carnaval chegar”. E o Chico teatrólogo (mais uma peça com sucessos musicais, “Gota d’água”, parceria com Paulo Pontes) e escritor (de “Fazenda modelo” em diante) enquanto narra os embates do autor com a Censura, o mote do livro. “Mulheres de Atenas”, em parceria com Augusto Boal, do disco “Meus caros amigos”, foi mais uma alvejada, embora “O que será”, do mesmo repertório, que forneceu o título do livro- “o que não tem censura nem nunca terá”, espantosamente passou. Não apenas as obras, mas o próprio artista era visado pela repressão. Em fevereiro de 1978, Chico foi interrogado de maneira oficial pelo Departamento de Polícia Política e Social, sendo questionado por sua ida a Portugal e os possíveis contatos que manteve com exilados brasileiros naquele país. Os interrogadores ainda queriam saber da participação de Chico no concurso literário Casa de Las Américas, em Cuba. Até sua bagagem de discos e livros foi vasculhada pela polícia. Ao mesmo tempo, seguia o baile macabro na Censura.

No mesmo ano de 78, uma peça sem nome e vertida do inglês foi inteiramente vetada. Era a transcriação que Chico pretendia fazer do texto do britânico John Gay, de 1728, posteriormente adaptado por Bertold Brecht, sob o título de “A ópera dos três vinténs”. O veto foi baseado numa lei de 1946, que tratava do “atentado ao decoro público capaz de provocar incitação contra o regime”. Mas a peça sob o nome de “Opera do malandro” acabou liberada e montada com grande sucesso (ainda virou filme) também extensivo à trilha musical, de clássicos como “Pedaço de mim”, “Homenagem ao malandro”, “O meu amor” e principalmente “Geni e o Zepelim”. Baseada na personagem Jenny, da “Ópera dos três vinténs” que sonha com a chegada de um navio pirata com 50 canhões que vai destruir toda a cidade e liberta-la, a Geni da transposição de Chico é uma prostituta execrada na cidade até que o despertar da cobiça de um poderoso homem que, no comando de um zepelim, ameaçava destruir a cidade e aniquilar sua população. Ao tomarem conhecimento do interesse do comandante, muitos habitantes (o prefeito, o bispo, o banqueiro...) que antes desprezavam Geni passaram a bajulá-la. A personagem sucumbe aos apelos dos conterrâneos e se entrega ao forasteiro, a cidade é salva, mas, assim que o local volta à normalidade, Geni é mais uma vez escorraçada e humilhada.

Disseca Márcio: “Além da temática que explora o caráter falso-moralista e hipócrita de uma sociedade (qualquer sociedade), ‘Geni e o zepelim’ é ainda mais genial por ser uma longa reportagem construída em versos heptassílabos metrificados e rimados”. O problema é o final catártico do refrão “joga pedra na Geni/ joga bosta na Geni ou merda num segundo verso)/ ela é feita pra apanhar/ ela é boa de cuspir”. O então ministro da Justiça Petrônio Portela pediu providências, contra a liberação dos palavrões, mandou centralizar a censura em Brasilia (mais uma mudança na ação do órgão provocada por Chico) e proibiu a execução da música, embora o disco circulasse livremente.

Enquanto a ditadura desmoronava e várias de suas composições proibidas acabaram liberadas com anos de atraso, Chico foi despindo o papel de contestador oficial. “Acho muito mais útil a minha atuação fora da música, aproveitando a popularidade que a música me dá para me manifestar como cidadão”. Mas a chamada abertura “lenta, gradual e segura” ainda sofreria graves tropeços como o atentado ao show de 1º de maio de 1981, no Riocentro, organizado pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade) uma entidade presidida pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer. Mas ao invés de atingir o evento alvo, que congregava 30 mil pessoas, principalmente jovens, o tiro da extrema direita saiu literalmente pela culatra, com a morte de um dos militares que foram sabota-lo e gravíssimos ferimentos em seu comparsa. 

No disco seguinte lançado por Chico, em “Angélica”, ele rememorava a história da estilista Zuzu Angel, que teve o filho torturado e morto pela ditadura, e cujo corpo foi atirado ao mar, como diz a pungente letra. A própria Zuzu, depois de muito protestar contra o crime, acabaria morta num acidente provocado em seu carro, na saída do Túnel Dois Irmãos (hoje Zuzu Angel), na estrada Lagoa-Barra, no Rio. A estilista havia deixado com Chico um documento em que pedia a divulgação pública caso algo lhe acontecesse.  Chico divulgou o episódio na música que não menciona o nome da protagonista, mas fica claro para quem conhecia a história. “Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho?/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”.  

Para não dizer que livrou-se inteiramente da censura Chico ainda teve podado um pueril “pentelho” de sua “Ciranda da bailarina” da bela trilha “Grande circo místico”, de 1983, em parceria com o ex-rival dos festivais Edu Lobo.  Depois de envolver-se com a campanha das diretas e diversas candidaturas eleitorais, Chico finalmente compôs o hino que fechou a tampa daqueles tempos sombrios. Não por acaso, um samba enredo, o afirmativo, “Vai passar” escrito com o parceiro Francis Hime. Descreve Márcio: “Um Chico inspiradíssimo, com criações poéticas únicas – que outro compositor conseguiria encaixar um “paralelepípedo” numa canção popular? –, realizava em um único samba um acerto de contas com um tempo passado (“Página infeliz da nossa história/ Passagem desbotada na memória/ Das nossas novas gerações”). Meticuloso caçador de declarações surpreendentes do compositor, Márcio pescou uma com que encerro a resenha: “Eu tenho consciência de que a censura me deu várias páginas de jornal, de notícia, ao mesmo tempo que eu também dei muita notoriedade à censura. E me orgulho disso. Eu denunciei a censura”.  (Tárik de Souza) 


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