O Barão da Ralé

O que não tem certeza nem nunca terá

quarta, 08 de novembro de 2023

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Gostaria de falar sobre Chico.

Sim, Chico Buarque.

Digo, gostaria porque sei que é impossível dizer tudo e sei também que tantos outros antes de mim, já disseram mais do que poderei. Mas algo em mim, que pode ser loucura ou falta de noção, pede que eu faça um movimento. Movimento que nasce de uma necessidade de expor meus atabalhoados estudos sobre a obra “cancionística” de Chico, estudos que me serviram de amparo para construir meu próprio universo de cancionista.

Antes de tudo preciso dizer que sempre faltará algo e esse algo é a música. Chico maneja tanto as palavras quanto as notas musicais (suas ou alheias!) como um arquiteto faria.

A correspondência das camadas e seus efeitos particulares, a sobreposição de significados e sonoridades, essa trama que faz de uma canção de Chico Buarque algo incomparável, só poderia ser apreendida e explicitada com estudos paralelos e dialógicos de um teórico da literatura com um teórico musical, ambos com sensibilidade aguçada para as áreas que se complementam na canção.

Um pouco depois desse antes, mas não menos importante, é preciso definir desde o começo que a obra de Chico é ímpar em sua ambição dentro da história da canção brasileira.

Por que afirmo isso?

Para explicar terei que me socorrer primeiramente em Umberto Eco, em seu "Apocalípticos e Integrados", quando na página 94 começa a esclarecer a diferença básica entre a linguagem falada (o prosear) comum e a mensagem poética. Basicamente, ele afirma que a mensagem falada para ser decodificada, entendida perfeitamente, precisa ser unívoca e precisa em seu significado e para isso o emissor se vale de constantes elementos de reforço e redundância. A prosa deve ser o lugar onde não resta dúvida do que se diz.

A linguagem poética é o seu contrário, e é desse contrário que ela extrai sua potência. Sua principal qualidade é a ambiguidade. A linguagem poética é uma perversão dos termos. Infringir as regras sintáticas, eliminar as redundâncias de modo a intensificar a multivisão. Violar o código de tal maneira que o receptor se empenhe na decifração e atente para a própria mensagem. A mensagem já não é veículo do significado, mas um manancial de significados jamais imobilizáveis. A mensagem poética instauraria a dúvida. O que será que será?

(Sei que vocês devem estar perguntando: “E o Chico?”. Talvez eu chegue lá. Torçam por mim.)

O Chico é esse trapezista que tenta a cada canção esse salto sem rede. Chico não se afasta de Geraldo Pereira, de Ismael, de Ataulfo, mas dentro desse sonho de concisão da linguagem falada que é a canção, propõe outro salto vertiginoso como a se perguntar: E se eu aproximasse a poética polissêmica e a fala proseada embutida no samba? E se eu fizesse o percurso contrário ao de Guimarães Rosa e trouxesse o mundo letrado para dentro do mundo popular?


Acho que estou confundindo, mais do que esclarecendo. Vou precisar de mais uma ajuda. Dessa vez invoco Gaston Bachelard em seu belíssimo texto “Instante Poético e Instante Metafísico". Ele abre o texto com essa esta definição:

A poesia é uma metafísica instantânea.

Mais a frente afirma;

...(a poesia) valendo-se de palavras ocas, ela faz calar a prosa ou os trinados que deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio.

E mais:

Enquanto o tempo da prosódia é horizontal, o tempo da poesia é vertical. A prosódia organiza apenas sonoridades sucessivas, regula cadências, administra ímpetos e emoções, por vezes, infelizmente, de modo inoportuno

A meta (poética) é a verticalidade, a profundidade ou a altura; é o instante estabilizado em que as simultaneidades, ordenando-se, provam que o instante poético tem uma perspectiva metafísica.”

o instante poético é a consequência de uma ambivalência.

Essa é ambição realizada de Chico Buarque. Ele se vale de inúmeros recursos estilísticos para verticalizar a canção e criar a cada verso seu um instante poético repleto de ambivalências e simultaneidades que nos fazem retornar sempre às suas criações na tentativa vã e deliciosa de decifrar suas camadas de significação. Elas são a constante surpresa. Elas estão vivas, ativas, dinâmicas. A polissemia é seu signo.

A obra de Chico “obriga o nosso ser a valorizar ou a desvalorizar” de verso em verso.

É poesia. E ponto. Mesmo ele afirmando que não é. Talvez ele saiba que para manter seu castelo de alegrias erguido precise deste disfarce. Claro que ele quer sublinhar que a canção precisa da música, que são unha e carne, e tem toda a razão ao sublinhar esse aspecto. Mas também é mais que isso, e não no sentido de poesia ser mais que canção, mas justamente o contrário. Chico se vale de uma arte híbrida (tal como o cinema), a canção, para construir mil incertezas sólidas. Como eu afirmei antes, a arquitetura operada por Chico é um milagre que talvez tenha feito nascer uma outra arte autônoma: “a letra buarqueana”, um sonho impossível.

Mas Chico vai além (propositalmente aquém!), pois suas letras não se contaminam nem um pouco de suas ambições. Elas são lisas, embebidas da língua das ruas. Elas não querem deixar o campo estrito da canção popular. Elas querem mergulhar no microcosmo dela e por dentro dela plantar espirais semânticos, propor caminhos como atalhos ou armadilhas, e principalmente garimpar no ínfimo o infinito.

Como dizia Tom Jobim, Chico escreve e fala “brasileiro”. E isso não é irrelevante para o entendimento de todos os recursos que Chico lança mão para realizar sua obra. E Chico lança mão de todos os  vastos recursos disponíveis no manejo dos sons e das palavras, não para exibi-los, antes para escondê-los, fazer com que soem como numa conversa de botequim.

É sobre esses recursos que tentarei falar no próximo texto.

Tomara que venha.

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