Música

O rock´n´roll de João Gilberto

quarta, 10 de julho de 2019

Compartilhar:

Em seu disco "Abraçaço", de 2012, Caetano Veloso afirma, logo na primeira faixa, que a “A bossa nova é foda”. Nessa música – que é ironicamente um rock – Caetano pinta um “retrato da bossa nova como gesto histórico e estético agressivo”, como ele mesmo definiu em entrevista à Folha de São Paulo na ocasião do lançamento do disco. A letra mistura referências a João Gilberto (o “bruxo de Juazeiro”), Tom Jobim e Carlos Lyra aos lutadores de MMA: Minotauro, Junior Cigano, José Aldo, culminando no refrão incisivo:

A bossa nova é foda!

No fim dos anos 1950, João Gilberto foi o responsável por iniciar um novo capítulo na música brasileira, criando uma verdadeira revolução musical chamada bossa nova. Com as inovações que vieram à tona em seu disco de estreia, o antológico "Chega de saudade", o “pai da bossa nova” instituiu uma nova forma de fazer música brasileira. Seu canto mudou para sempre a história da música popular brasileira e João logo virou um mito. Hoje,  olhando em retrospectiva a carreira e a figura de João Gilberto, que faleceu no último dia 6 de julho, aos 88 anos de idade, é possível perceber que ele foi um artista muito mais irreverente e “agressivo” do que faz crer a imagem de “cantor suave e delicado” à qual foi associado. 

Nascido no dia 10 de junho de 1931 em Juazeiro (BA), João iniciou sua carreira em 1949, quando foi contratado pela Rádio Sociedade da Bahia, em Salvador. Logo depois, foi para o Rio de Janeiro, onde fez parte do conjunto vocal Garotos da Lua, com o qual chegou a gravar dois discos 78 rpm pela Todamérica

Em 1952, iniciou sua carreira solo e gravou, pela Copacabana, um 78 rpm com as canções “Quando ela sai” (Alberto Jesus e Roberto Penteado) e “Meia Luz” (Hianto de Almeida e João Luiz). Nessa época, seu canto ainda era uma imitação de seu grande ídolo, Orlando Silva, num estilo que explorava sua potência vocal. Algo ainda bem distante da “desafinação” proposta anos depois pela bossa nova. 

Ao longo dos anos 1950, João fez parte de novos conjuntos vocais, como o Quitandinha Serenaders e os Anjos do Inferno, e com eles chegou a participar de espetáculos musicais em teatros de revista. 

Em 1958, Elizeth Cardoso gravou o disco “Canção do amor demais”, com repertório dedicado à parceria de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Na época ninguém percebeu, mas a famosa “batida bossa nova” já estava presente ali: João Gilberto fez uma participação no disco, tocando violão nas faixas “Chega de saudade” e “Outra vez”

A revolução mesmo só se deu meses depois, quando João entrou em estúdio para gravar um 78 rpm que continha as músicas “Chega de saudade” e “Bim bom”, esta uma rara composição própria, cuja letra simples contrasta com a complexidade musical ali apresentada pela primeira vez:

Bim bom bim bim bom bom

Bim bom bim bim bom bim bim

É só isso o meu baião

E não tem mais nada não

O meu coração pediu assim, só

Bim bom bim bim bom bom...

O disco tornou-se o marco inicial da bossa nova, pois é nele que está presente a ruptura estética proposta pelo novo movimento. A essa altura, João já não era um imitador de Orlando Silva. Ele tinha terminado uma obsessiva jornada musical em busca de uma nova sonoridade, que culminou na criação da “batida bossa nova”. Essa batida consistia em tocar acordes no violão que produzissem harmonia  e ritmo ao mesmo tempo, enquanto a voz cantava baixinho, sem vibrato, adiantando ou atrasando o canto em relação ao ritmo. Mas não era preciso entender de técnica musical para sentir o choque causado por essas gravações. Aquilo era diferente de tudo o que já tinha sido feito em termos de música no Brasil.

E a revolução prosseguiu em 1959, quando foi lançado o LP “Chega de saudade”, pela Odeon, que continha também as músicas “Desafinado”, considerada o manifesto do movimento bossanovista ("Se você insiste em classificar/ Meu comportamento de anti-musical/ Eu mesmo mentindo devo argumentar/ Que isso é bossa nova, isso é muito natural”), “Lobo bobo”, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, além de releituras de antigos sucessos do cancioneiro nacional, como “Rosa Morena”, de Dorival Caymmi e “Morena boca de ouro”, de Ary Barroso e Luís Peixoto.


Com esse disco, a bossa nova tornou-se um movimento nacionalmente conhecido. Ser bossa nova passou a ser sinônimo de ser moderno, sofisticado, descolado e inteligente. Surgiram, então, dezenas de outros cantores de bossa nova, e o mercado se aproveitou, lançando "carros bossa nova", "geladeiras bossa nova", e até o presidente Juscelino Kubitschek passou a ser conhecido como o “presidente bossa nova”. 

Depois do “Chega de saudade”, João lançou outros dois discos que acabaram ficando conhecidos como a trilogia essencial do movimento bossanovista. O segundo veio em 1960, “O amor, o sorriso e a flor”, e trazia os clássicos “Samba de uma nota só” (Tom Jobim e Newton Mendonça), “O pato” (Jaime Silva e Neuza Teixeira) e “Corcovado" (Tom Jobim), que também se tornou um retrato do novo gênero:

Um cantinho e um violão

Este amor, uma canção

Pra fazer feliz a quem se ama

No ano seguinte, em 1961, a trilogia foi encerrada com o disco “João Gilberto”, que além de reunir pérolas de antigos compositores como Dorival Caymmi e Geraldo Pereira, trazia também novos clássicos da turma bossa nova, como “O barquinho” (Menescal e Bôscoli) e “O amor em paz” (Tom e Vinicius). 

A década de 1960, quando João já se tornara um mito e ídolo máximo dos novos talentos que surgiram nessa época,  foi marcada pela internacionalização da bossa nova – e, consequentemente, da música brasileira. Em 21 de novembro de 1962, aconteceu o famoso show no Carnegie Hall, do qual quase não se tem registros. O que se sabe é que o espetáculo foi marcado por polêmicas e a imprensa da época dividiu-se entre tratar o espetáculo como o triunfo do Brasil no exterior, ou como um vexame absoluto, com falhas técnicas e artistas errando as letras e marcações. 

Exitoso ou não, o fato é que depois do show no Carnegie Hall, João Gilberto se radicou nos Estados Unidos e, pouco depois, em 1964, lançou o disco "Getz/Gilberto", em parceria com Stan Getz, saxofonista norte-americano conhecido pela consolidação do cool jazz. O disco, que também contava com a ilustre presença de Tom Jobim, trazia regravações de clássicos da bossa nova como “Garota de Ipanema” e novas releituras de alguns dos compositores preferidos e mais recorrentes de João: Dorival Caymmi, com “Doralice”, e Ary Barroso, com a monumental versão de “Pra machucar meu coração”. O disco, esse sim, colocou a bossa nova no mudo – inclusive nas paradas de sucesso.


Em 1965, "Getz/Gilberto" fez história na principal premiação de música dos Estados Unidos, o Grammy. O álbum ganhou na categoria “Álbum do Ano”, sendo o primeiro disco de "jazz" a levar o prêmio. Além do “Álbum do Ano”, a versão de “Garota de Ipanema”, que contou com a participação de Astrud Gilberto, então casada com João, levou o prêmio de “Gravação do Ano”, desbancando nomes como Barabara Streisand, Louis Armstrong e até os Beatles! O fato é que esse disco, famoso até hoje por ser o “álbum de jazz mais vendido da história”, é na verdade um álbum de bossa nova – cantado todo em português por um baiano de Juazeiro.

Nos anos subsequentes, João deixou de ser apenas um mito da cultura nacional e tornou-se um mito mundial: respeitado e admirado por músicos e ouvintes do mundo inteiro. Continuou gravando seus discos com o mesmo perfeccionismo de sempre. Só da década de 1970, podemos citar o exemplo de dois álbuns antológicos que se somaram à sua discografia: o “En México”, de 1971, resultado de uma temporada que realizou no país, e “Amoroso” que marca seu encontro com o arranjador alemão Claus Ogerman

Além da brilhante carreira musical, a mitologia em torno de João Gilberto foi reforçada pelas muitas lendas urbanas que circulam em torno de sua figura, e que encontraram respaldo em sua personalidade muitas vezes excêntrica. O fato é que João Gilberto não foi um homem comum. E como insinuou Caetano em sua música “A bossa nova é foda”, talvez tenha sido mais irreverente e transgressor do que nos faz crer a narrativa criada em torno dele. Sem João, por exemplo, não existiriam Os Novos Baianos, o grupo que é a cara do desbunde da década de 1970, e que só conseguiu fazer o antológico disco “Acabou Chorare” porque João lhes ensinou a apreciar a música brasileira e a baianidade que aqueles meninos já traziam em si, mas não sabiam. Em 1980, quando apresentou na TV Globo o especial “João Gilberto Pereira Prado de Oliveira”, convidou a roqueira Rita Lee para cantar com ele uma marchinha de carnaval, contrariando os que achavam que ele dividiria o palco com algum outro nome da bossa nova. Em 1999, no show que fez com Caetano Veloso na inauguração do Credicard Hall em São Paulo, quando foi vaiado pelo público por reclamar da acústica da casa, não hesitou em mostrar a língua e fazer uma careta para a plateia que o desrespeitava. À sua maneira, foram atitudes rock´n´roll, como também foi rock´n´roll a radical ruptura estética que promoveu na música brasileira – e mundial – em 1958.

Apesar de ser indubitavelmente o "pai da bossa nova", o que João criou foi, mais do que um gênero musical, uma forma toda própria de fazer música. É redutor pensar nele apenas como "cantor de bossa nova" ou, pior, "cantor sofisticado". Ele foi muito mais do que isso. Sua obra nunca foi redutora, e ele nunca teve preconceitos: mais do que bossa nova, cantou bolero, samba, samba-canção, baião, rock (haja visto sua versão de "Me Chama", de Lobão)... Sua genialidade foi justamente ter cantado tudo isso de uma maneira extremamente precisa, minimalista e sintética, só com um banquinho, um violão e sua voz. Uma maneira cem por cento sua, que nunca ninguém conseguiu imitar, por mais que muitos tenham tentado. 

Mais do que a bossa nova, João Gilberto foi a música popular brasileira em sua essência mais bem lapidada. Com sua morte, o Brasil perdeu um gênio, um mestre, um pai. Com a obra deixada por ele, ganhou um artista gigante. Em 1997, na letra de “Pra ninguém”, Caetano disse que “melhor do que o silêncio só João”. Mas talvez a melhor síntese do que foi João Gilberto (ele, que tanto gostava de sínteses) tenha relação com outra canção de Caetano, já citada neste texto. Precisamos apenas alterar uma parte do refrão e dizer:

João Gilberto é foda! 


Texto por: Tito Guedes
Fonte das imagens: Internet 

Comentários

Divulgue seu lançamento