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O último Natal na calçada

quarta, 22 de dezembro de 2021

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Esta coluna, embora musical e natalina, não fala nem de música nem de Natal. Fala de um bar onde a música fez morada (e ainda faz) e deu o tom (e ainda dá) durante meio século. Fala do Bip Bip, templo da música popular no Rio de Janeiro – conhecido e amado no país e diversos cantos do mundo – e de seu proprietário, o lendário, amado e saudoso Alfredo Jacinto Melo, o Alfredinho (1943-2019).

 Se durante o ano o bar Bip Bip é templo profano da boemia e da música, no dia de Natal é território sagrado do amor e da caridade. O dono da casa contou durante alguns anos (graças ao empenho e intermediação de um frequentador emérito e muito querido, Diógenes Valadares, o “Vala do Cavaco”) com o apoio culinário do hotel mais famoso Copacabana, da cidade e do país para oferecer um almoço completo e delicioso aos necessitados das ruas ou das comunidades próximas.

Era bonito ver a fila que se formava na Rua Almirante Gonçalves, em direção aos pratos servidos por Alfredo e pelos colaboradores voluntários, entregues sempre em companhia de copos generosos de refrigerantes.

No último regabofe desses a que estive presente, com mesas perfiladas na calçada, sobre elas pratos cheios com galinha assada, farofa e arroz, tudo de primeiríssima qualidade, em volta das mesas tantas pessoas que há muito não faziam uma refeição daquelas, me concentrei no brilho de alegria e felicidade que pulava dos olhos do Alfredo.

Nos últimos anos, já sem o apoio do hotel, Alfredinho substituiu o prato feito por deliciosos sanduíches de linguiça – assada em grande quantidade com o capricho profissional e amoroso de Matias Bidart –, que os avisados com antecedência ou passantes de momento podiam fartar-se e repetir à vontade. Sempre acompanhado de refrigerantes, claro, que o homem não fazia por menos.

Independente do cardápio oferecido, uma vez que tanto um quanto outro matava perfeitamente a fome de quem com fome chegava, era o mesmo o brilho de alegria e felicidade nos olhos do velho Alfredo. O mesmo brilho que já identifiquei em fotografias de indivíduos que se chamavam Gandhi, Che, Helder Câmara, Madre Thereza, Irmã Dulce, Chico Xavier, Betinho, Mujica e mais alguns. Todos viciados em fazer o bem.

O brilho no olhar se manteve até o penúltimo Natal. No último, infelizmente, já não foi assim.

O ambiente naquele vinte e quatro de dezembro de dois mil e dezoito (Alfredo nos deixou em março de 2019) era o mesmo de anos anteriores, a presença de gente com fome em busca de encher a barriga (fenômeno cada vez mais comum neste país de tantas desigualdades) era a mesma. Mas Alfredinho não era mais o mesmo.

Matias, fiel escudeiro, esgrimava os espetos diante da churrasqueira forrada de linguiça e da mesa farta em pães, Didu Nogueira fazia imitações impagáveis, Sylvinho e Ernesto contavam causos e ríamos, ríamos muito; mas o sorriso do Alfredinho não chegava aos seus olhos nem contagiava os nossos. Ele estava triste. Visivelmente triste, a saúde abalada e os temores rondando sua alma.

Comemos, bebemos e brindamos, como sempre. Mas o nosso amigo esteve ausente como nunca.

No fim da tarde, fiz a pergunta padrão:

– Feliz, Neném?
– Estou, amigo. Sempre fico – respondeu.


Poderia até estar mesmo, porque fazer o bem foi o lenitivo maior de sua existência. Mas não conseguiu, em nenhum momento, deixar transparecer.

Naquele dia não teve música no Bip. E em meio à confraternização anual pairava um silêncio pesado. Entre abraços e beijos, trocamos o nosso último “Feliz Natal” na calçada.


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