Sobre a Canção

O voo de mosca de Luís Capucho

terça, 17 de outubro de 2023

Compartilhar:

Há muitos anos os engenheiros aeroespaciais estudam as moscas domésticas. O voo aparentemente descontrolado mas incrivelmente preciso delas, capaz de se desviar de obstáculos com extrema agilidade (experimente atingir uma no ar) se deve a um órgão chamado balancim, que os engenheiros tentam reproduzir em aviões, dois pequenos bastões embaixo das asas que se movimentam de forma a contrabalançar forças externas como rajadas de vento e aumentar o equilíbrio nas curvas. Com eles, o voo da mosca traça com perfeita segurança linhas sinuosas as mais imprevisíveis.

Guardemos esta informação e passemos ao tema canção. O compositor e pesquisador Luiz Tatit é defensor da tese de que a melodia da canção popular se origina das variações naturais da fala, estilizadas em notas musicais, e que uma canção será tão mais bem sucedida artisticamente quanto mais conseguir conciliar esta origem na fala com a estruturação formal estrófica. Tatit demonstra sua tese tanto em termos teóricos, organizando um método de análise melódica e aplicando-o a numerosas peças do nosso cancioneiro, quanto práticos, em seu trabalho de compositor desde o Grupo Rumo, caracterizado por estar sempre no limiar entre canto e fala, sem que suas canções deixem de ter refrões e repetições.

Guardemos mais esta informação para nos aproximarmos do tema deste artigo, Luís Capucho. Para isso, torna-se indispensável uma curta informação biográfica. Capucho despontou junto a uma turma de músicos cariocas na década de 1990, como Pedro Luis, Mathilda Kovak, Arícia Mess e Suely Mesquita. Porém, antes mesmo de gravar seu primeiro álbum, Luís teve um sério problema de saúde. Esteve em coma devido a uma neurotoxoplasmose e, ao se recuperar, permaneceu com dificuldades motoras que afetaram tanto seus movimentos quanto sua fala. Capucho foi obrigado a reinventar sua forma de tocar o violão que lhe acompanhava e também seu canto. 

E guardemos esta última informação para enfim tratarmos do tema real deste artigo, a música de Luís Capucho e seu formato cancional muito particular. As canções de Capucho não seguem à risca a teoria (e prática) de Tatit, antes se relacionam com a voz falada de uma outra forma igualmente forte, mas talvez mais sutil. Se Tatit pensa na relação fala/melodia fonema a fonema, com as variações naturais da voz se desdobrando nas notas, Capucho faz esta passagem de forma mais ampla, com curvas mais suaves, no desenvolvimento das frases e articulações ente elas. Se em Tatit (e na canção tradicional que ele analisa) a irregularidades da fala se convertem em curvas regulares na melodia, em Capucho a regularidade é a do voo da mosca, inesperada, imprevisível, mas equilibrada por um sistema de contrapesos internos invisível ao ouvinte. A forma melódica de Capucho não acompanha a voz, mas o divagar.

Como resultado, as canções de Capucho mal têm repetições de melodia - que dirá refrões. Têm, sim, motivos melódicos - um motivo é uma sequência de poucas notas, três, quatro, a ser desenvolvida (o exemplo mais famoso provavelmente são as quatro notas iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven), diferentemente de um tema composto por mais notas e mais desenvolvido (e frequentemente contendo um ou mais motivos em si). Capucho usa motivos diversos em suas canções, o que dá a elas suas faces particulares, mas dificilmente encontraremos nelas estrofes com a mesma melodia e letras diferentes, assim como numa conversa não se usa a mesma entonação para dizer coisas diferentes. A melodia de Capucho desenvolve o assunto tanto quanto a letra, com a reiteração mínima necessária.

Praticamente todas as composições do Capucho poderiam servir de exemplo aqui. Tomemos a que possivelmente é a mais conhecida de sua autoria, "Maluca". Ela foi gravada em 2003 em seu primeiro álbum, Lua Singela. Entretanto, alguns anos depois Capucho lançou o álbum Antigo, que é o registro de um show feito em 1995 no Café Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ainda antes de suas questões de saúde. Neste caso, comecemos por este.


E na escuta se percebe um outro procedimento que, além da melodia sem repetição, dá às canções de Capucho esta feição irregular da fala: a quebra da quadratura de compassos.

Explico. Embora o tempo musical possa ter diversas contagens - de dois em dois, três em três, quatro, e mesmo compassos compostos como de três tempos repetidos, ou os chamados irregulares como de cinco ou sete tempos, a contagem de compassos é surpreendentemente mais rígida, especialmente na canção popular. Uma frase musical será composta com enorme frequência por um número par ou, mais precisamente, por quatro compassos ou um múltiplo dele. Uma estrofe terá oito ou dezesseis compassos, e assim por diante, e portanto toda a composição será dividida nestes subgrupos, cada um com sua própria sensação de completude. O desenvolvimento harmônico-melódico se dá dentro desta perspectiva, obedecendo a esta estrutura de quatro em quatro que seguimos quase instintivamente na escuta, acostumados que estamos com séculos desta regragem.

Ocorre que a língua falada não se importa nem um pouco com os múltiplos de quatro. E, se a canção tradicional, ao fazer a passagem da fala para o canto a cada som, faz também sua transposição para os ciclos de quatro, Capucho por sua vez, ao fazer esta passagem pela via do discurso, se permite quebrar a quadratura inúmeras vezes. Não se trata de compassos compostos ou de tamanhos diferentes (às vezes também, mas não é o recurso principal). Em vez disso, seu ciclo de discurso, que seria correspondente a uma estrofe, poderá ter três, cinco, sete compassos, à vontade, conforme seja necessário para completar a sentença e a ideia. Isto dará a suas composições feições irregulares, tornando-as mesmo desafiadoras para cantores e acompanhantes, que precisam procurar ou mesmo criar alguma regularidade para poder interpretá-las.

Foi isso que fez Cassia Eller ao incluir "Maluca" no repertório de seu álbum Com você... meu mundo estaria completo, em 1999.


Cassia, para sua versão, baseou-se na gravação da apresentação de Capucho em uma fita cassete que lhe chegou às mãos. É nítido o seu empenho em explicitar em "Maluca" uma forma próxima da tradição cancional, ainda que Cassia fosse uma intérprete pouco afeita a convenções - ou não teria escolhido esta canção. As pausas entre as frases se tornam mais regulares que na voz de Capucho, assim como as divisões rítmicas da voz são mais marcadas. Além disso, Cassia torna o encerramento da música em uma espécie de refrão, mesmo que iniciado a partir da repetição do fim de uma frase. O verso começa com "Era grande o barulho da chuva", e em seguida:

"...da chuva
Eu fiquei maluca
Eu fiquei maluca"

A repetição deste trecho, que Capucho não fizera, cria um ciclo de 16 tempos que se repete para encerrar a canção. Com isto, e também com as diferenças sutis de tratamento vocal da melodia, Cassia consegue tornar a escuta de Maluca mais familiar ao ouvinte, sem deixar de lado suas características essenciais. Ademais, ela segue o sentido interpretativo suave de Capucho e que é também o tom geral do álbum "Com você...", em que ela surpreendeu o público trocando sua performance rascante e mesmo gritada de roqueira por interpretações mais tranquilas - e um repertório adequado à mudança. 

E só em 2003, Capucho apresenta sua versão da música (uma vez que o álbum Antigo foi lançado mais tarde).


No álbum "Poema Maldito", de 2014, antes de cantar a canção "Formigueiro", Capucho diz:

"Essa é uma música que eu fiz muito antigamente. Então cantar essas músicas que eu fiz muito antigamente com essa voz de agora é muito estranho para mim. Mas eu quis fazer isso".

Na comparação com a versão de 1995 de "Maluca", é possível perceber algumas das adaptações que Capucho foi obrigado a fazer em seu estilo de tocar tanto quanto em sua voz. Esta se tornou mais gutural. As dificuldades de coordenação o levaram a trocar o dedilhado pelo rasgueio na mão direita, e passou a ser necessário um esforço para pronunciar as palavras de forma inteligível. Isto não deixa de transparecer na interpretação, mas, curiosamente, não a prejudica. É claro, tudo se afasta do padrão de beleza e suavidade, mas ao mesmo tempo acrescenta como que um colorido novo à canção. Por outro lado, tanto a mudança vocal quanto o ritmo mais marcado no violão passam a contrastar mais fortemente com a fluidez estrutural da composição, e Capucho adota a repetição dos últimos versos feita por Cassia, com a volta da quadratura. 

No comentário que faz ao álbum Lua Singela em sua página, Luís Capucho diz:

"De meu ponto de vista, tudo continua delicado e tradicional, mas porque, com os dois ou três acordes que “espanco” no violão e com minha voz meio de lava com que faço a melodia, ficou a ideia de um Luís Capucho grunge, underground, maldito e tudo. Mas repito que sou um bom rapaz e continuo a fazer MPB."

Depois de toda a análise feita acima, afirmar que o que Capucho faz está na tradição da MPB se torna um pouco mais difícil. Mas isto não significa que também não traga nela algo do gesto cancional desenvolvido por tantos anos. Assim, ao enumerar os lugares onde distribui os botões de rosa, a divisão rítmica de "Maluca" se acelera em notas de tessitura média, caracterizando a ação repetida pela repetição de notas próximas. E ao final da frase, o verso "Da chuva se lança" para o ponto mais agudo da canção, passando da figurativização para a passionalidade em notas estendidas. E funciona: a sucessão rápida entre estas duas funções semióticas pega o ouvinte de surpresa (ainda mais com a quebra de quadratura da estrofe) e traz a emoção à tona. Quase é possível enxergar o eu lírico da canção girando na chuva entre botões de rosa, a própria imagem da felicidade.

A música de Luís Capucho tem um nível enorme de originalidade, tanto em termos estruturais, como tratamos, quanto pelo tratamento dado a temas aparentemente banais como o de "Maluca" - a passagem de um caminhão levando flores - ou o de Atitudes Burras - a descrição de pessoas numa sala de espera - ou Antigamente - o ato de pedir um cigarro a um desconhecido na rua. Em todas, Capucho consegue que destes pequenos acontecimentos extraia-se algo que os transcende - ou no dizer de outro compositor pouco convencional, o paulista Maurício Pereira, que uma banalidade gere uma canção gigante. Luís Capucho compartilha a deriva de seu pensamento em uma dicção própria e refinada, uma poética crua e delicada. Um voo de mosca que, antieuclidianamente, alcança o espaço. 


Comentários

Divulgue seu lançamento