Historicizando as canções

Os sentimentos homoafetivos nas canções de Agnaldo Timóteo e Odair José

sexta, 13 de maio de 2022

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Quando artistas como Agnaldo Timóteo, Odair José, Waldick Soriano, e entre outros, começaram a ganhar sucesso no cenário musical brasileiro, eles foram chamados de cafonas, termo popularizado por Carlos Imperial. E, a partir da década de 1980, se convencionou a chamá-los de bregas. Em suma, os dois termos carregam um tom pejorativo sobre esses artistas.

Alguns pontos podem ajudar a entender essa classificação. Primeiro, em 1960 foi criado o Centro de Cultura Popular (CPC) pela União Nacional dos Estudantes (UNE), que tinha o objetivo de participar dos debates políticos, discutir sobre nacionalismo e a valorização do povo. Para esse grupo o povo, leia-se as classes baixas, era visto como alienado e sem capacidade de resolver seus conflitos, e para esses “intelectuais” a arte era base da ação política e qualquer manifestação artística fora do modelo proposto por eles era visto como uma arte alienada.

Segundo ponto, com base no livro Roberto Carlos em detalhes de Paulo Cesar de Araújo, até 1965 a música popular brasileira do meio universitário era chamada genericamente de bossa nova, por causa de João Gilberto. Entretanto, em razão do sucesso de Roberto Carlos, em 1965 começou a se usar a sigla MPB que conhecemos hoje, e era alicerçada numa luta nacionalista e contra a invasão cultural, em especial norte-americana, e ao mesmo tempo se intencionava a popularização da famosa “música de protesto”. Esse embate foi citado no texto sobre o Ritchie, que assim como Roberto Carlos e a Jovem Guarda, foi acusado de fazer uma música alienígena, uma produção de dominação cultural pelos estrangeiros.

Marcha contra o uso da guitarra elétrica, 1967.

No meio desses embates acerca do que seria a música brasileira estavam os artistas do nosso texto de hoje, Agnaldo e Odair, que faziam baladas românticas e não se enquadravam nesse modelo de música de protesto, lembrando que a música enquadrada na MPB, era em sua maioria consumida pela classe média e universitária. Enquanto esses artistas românticos faziam sucesso, em grande medida, nas classes mais baixas.

Em suma, esses artistas foram tratados como uma produção menor, sem valor cultural e alheio às questões sociais do nosso país. Porém, com base nas canções que serão citadas no decorrer do texto vamos ter consciência que esses artistas estavam cientes dos problemas sociais e colocaram pautas sociais em suas composições, nos exemplos de hoje serão canções com a temática homoafetiva.

“Numa noite de insônia saí
Procurando emoções diferentes”

Durante a Ditadura Civil-Militar a homossexualidade foi um tema que incomodava os militares. Homossexuais eram perseguidos pela repressão por representarem uma quebra do padrão heteronormativo, e até mesmo entre a esquerda gays eram repreendidos, pois para muitos “vermelhos” a homossexualidade era um desvio pequeno burguês.

Nesse contexto de bastante repressão, Agnaldo Timóteo compôs músicas com temática homoafetiva, no que Paulo Cesar de Araújo, em seu livro Eu não sou cachorro, não, chamou de Trilogia da Noite. Composta por A galeria do Amor (1975), Perdidos na Noite (1976) e Eu pecador (1977).

Em 1975 Agnaldo Timóteo lança o LP intitulado “A Galeria do Amor”, que também é título da primeira faixa do disco, que originalmente seria chamada de Galeria Alaska, em referência ao lugar de mesmo nome que existia no Rio de Janeiro, um reduto LGBT, porém a gravadora, ODEON, achou que seria melhor alterar para não causar problemas com a Censura.

“Na galeria do amor é assim
Muita gente à procura de gente
A galeria do amor é assim
Um lugar de emoções diferentes
Onde a gente que é gente se entende
Onde pode se amar livremente”

Caso o leitor ouça toda  a música, vai perceber que o  eu  lírico  começa  afirmando  que  estava  andando  pela  noite  e  procurando  por emoções  diferentes,  este  diferente  já  remete  a  algo  não  comum,  no  caso  uma  relação heteronormativa,  e  continua  contando  que  ficou  curioso  por  certo  ambiente,  ambiente  no qual  as  pessoas  procuram  por  emoções  diferentes, mais  uma  vez  fazendo  uma  quebra  do que seria a “normalidade”.

Outro trecho interessante é quando nosso personagem fala “Onde a gente que é gente se entende, onde pode se amar livremente”. Realço essa frase porque entendido possui uma conotação homossexual. Mesmo com metáforas vemos que Agnaldo Timóteo deixa pistas sobre a mensagem da canção, lembrando que ele foi o compositor, e não apenas intérprete. 

LP Galeria do Amor, 1975.

Em 1976 Agnaldo Timóteo lança o LP Perdido na Noite, e a faixa título mais uma vez faz referência às desventuras da vida noturna:

Estou perdido na noite de muitos
Sempre à procura da mesma ilusão
Estou perdido na noite, sozinho
Pelos caminhos sombrios eu vou [...]

Mais uma vez Agnaldo nos apresenta um personagem solitário, que procura por um amor mas não é o único, “Estou perdido como tantos perdidos”, completa contando que esse grupo é amante da liberdade e que mesmo com as dificuldades, como vimos, a repressão, a esperança permanece.

LP Perdido na Noite, 1976.

No ano seguinte, 1977, é lançado o LP Eu Pecador, e mais uma vez a faixa título narra sobre homossexualidade e dessa vez citando o cristianismo.

“Senhor
Não pude suportar
A estranha sensação de experimentar
Um amor por Vós não concebido
Um amor proibido pela Vossa lei
Senhor
Eu sou um pecador[...]”

Com a audição da canção você pode perceber que o eu lírico está  fazendo  uma  espécie  de  prece, pedindo perdão a Deus, afirmando que cometeu um grave pecado, pecado este ligado a um amor  proibido.  Para  a  moralidade  cristã  vigente  à  época,  a  homossexualidade  não  era permitida. Muito embora nosso personagem se sinta culpado e peça desculpas pela quebra da lei divina, continua seu relato afirmando ter gostado e que é difícil deixar o amor proibido depois de o ter experimentado.

LP Eu pecador, 1977.

Para encerrar esse texto, vou citar agora uma composição de Odair José, o terror das empregadas, entre outras alcunhas, como discutido no primeiro texto dessa coluna. A canção escolhida é Forma de sentir, do seu LP Coisa Simples, de 1978, lançado pela RCA Victor:

“Sei que és entendido e vai entender
Que eu entendo e aceito a tua forma de amor
Que eu entendo e aceito a tua forma de amor…
Ame, assuma e consuma
O teu verdadeiro sentido do sentir
E nem penses que eu vou proibir…[...]

Odair José é reconhecido como um transgressor da moral e dos bons costumes durante a Ditadura Civil-Militar, falou de sexo fora do casamento, sobre prostituição, a primeira experiência sexual, e como vimos no exemplo acima, também falou da homoafetividade, mostrando que toda forma de amor deve ser aceitar, usando a linguagem de fresta, o termo entendido também é usado nessa canção.

Com o texto de hoje podemos entender que os artistas chamados de cafonas, tratados como artistas alienados e sem consciência da realidade brasileira, discutiram temas que eram foram desmerecidos até mesmo pela esquerda que se considerava revolucionária. Esses artistas discutiram temas do cotidiano de grupos marginalizados e que são fundamentais para entender o período da ditadura militar no nosso país.

LP Coisas Simples, 1978.

“Quero que você me abrace forte
Pois do mundo tenho medo
Trago escondido no meu corpo
O mais lindo dos segredos”

(Fora da Realidade, Odair José, 1977)

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