A música de

Os três tesouros franceses de Tuca, uma gigante brasileira

por Ricardo Santhiago

quarta, 19 de maio de 2021

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Uma enorme comoção espalhou-se por um minúsculo universo digital durante algumas semanas de outubro de 2020. De uma hora para outra, dezenas de cópias do LP "Dracula I love you", da cantora e compositora Tuca, foram colocadas à venda na plataforma Discogs, website que combina banco de dados e intermediador de vendas e que é um lugar de encontro de aficionados por música e, particularmente, por vinis e objetos colecionáveis.

Não se tratava, no entanto, de um lote recém-descoberto, escavado das profundezas da terra, do raríssimo vinil colocado em circulação em 1974, pela Som Livre – relíquia comercializada hoje por vários milhares de reais. Tratava-se, isso sim, de um bootleg, termo em inglês que ameniza a palavra pirata para nomear mercadorias produzidas e distribuídas para além das bordas da legalidade, mas com o cuidado e o carinho de admiradores verdadeiramente comprometidos com a divulgação de uma obra e de um artista.

O lançamento suscitou um pequeno mas interessante debate, que envolve as dimensões do reconhecimento artístico e das formas de preservação do patrimônio cultural. Colocou em relevo o papel das colaborações e das intermidialidades na produção de uma obra musical. Voltaremos a isso. Antes, porém, é preciso responder de que artista e de disco estamos falando.

Tuca: um enigma persistente

Nascida em 17 de outubro de 1944 como Valeniza Zagni da Silva, Tuca tornou-se publicamente conhecida pelo seu pseudônimo na segunda metade dos anos 1960, como uma cantora e compositora fortemente ligada à tradição lírica da MPB. Tal qual a maior parte dos seus contemporâneos, emergiu a partir de um concurso: no II Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1966, defendeu com Airto Moreira a canção "Porta-estandarte", de Fernando Lona e Geraldo Vandré. Saiu vencedora e ganhou, além do prêmio Berimbau de Ouro, sua primeira oportunidade fonográfica, registrando a canção com o próprio Vandré para um compacto simples.

Divertida e expansiva, Tuca logo ingressou nos circuitos prestigiados da arte e da comunicação que a conduziriam rapidamente ao Rio de Janeiro e à batuta do empresário Guilherme Araújo. No mesmo ano em que apareceu em São Paulo, estreou no famoso bar carioca Cangaceiro e, em 1967, passou a dividir o palco com Miéle em um show antológico no Rui Bar Bossa, que abriu para ambos muitas oportunidades em boates, no rádio e na TV. Tuca circulou e produziu energeticamente para seus conterrâneos até 1969, quando partiu para a Europa em busca de liberdade e desafio: em seu país, havia sido aprisionada no papel de uma showoman divertida e bonachona.

Desembarcando em Madri, na Espanha, onde aperfeiçoou-se na guitarra, passou temporadas também na Itália e na França. Sua musicalidade foi aplaudida e resultou em gravações de compactos, além de shows em boates e até no Olympia de Paris. Na capital francesa, tocando quase todas as noites no restaurante brasileiro La Feijoada, conheceu a cantora e compositora Françoise Hardy, que se apaixonou imediatamente por sua composição "Même sous la pluie". A frustração por não poder gravá-la – Tuca a havia prometido a outra cantora – abriu caminho, porém, para uma amizade e para uma das colaborações mais notáveis entre um artista brasileiro e um artista estrangeiro: o álbum "La question".

Talvez o melhor e o mais conhecido entre os que vieram antes ou depois, "La question" é uma espécie de nome-fantasia para o 16º disco da carreira – em princípio homônimo – de Hardy. Tuca é a autora de toda a música do álbum; parceira em quase todas as letras; arranjadora das doze faixas, numa parceria com o produtor e arranjador Raymond Donnez. É também Tuca quem toca violão nas gravações, feitas ao vivo, com a companhia de Guy Pedersen no contrabaixo. O trio ensaiou exaustivamente em busca de uma sonoridade singular, que remetesse longinquamente – sem nunca emular – o pop delicado de Hardy ou a formação de fundo bossanovista de Tuca.

Em sua mal-humorada e por vezes impiedosa autobiografia, "Le désespoir des singes... et autres bagatelles", Hardy reconhece o disco feito com Tuca como um ponto de virada em sua vida profissional (e como o seu preferido). Não é para menos. Há cinquenta anos, "La Question" (a faixa) figura entre as cem canções francesas mais executadas fora do país, e "La Question" (o disco) é repetidamente celebrado como uma obra profundamente bela e inegavelmente atemporal. 

Tuca e Françoise Hardy em Paris (anos 1970)

Outro disco no qual Tuca colaborou, em Paris, também se tornou um ponto na virada na carreira de sua titular: desta vez, Nara Leão. Lançado também em 1971, o álbum duplo "Dez anos depois" desenhou a reaproximação de um dos ícones da bossa nova com o repertório do gênero, que ela todavia jamais havia registrado, por coerência com seu projeto estético-político e com a clareza com que conduziu a construção de sua persona artística. Tendo se autoexilado na França em 1969 para escapar da sombria ditadura militar brasileira, então no auge da repressão, Nara encontrou em Tuca a parceira ideal para executar a obra que delineava.

A cumplicidade entre ambas foi traduzida em um disco de voz e dois violões que apenas os envolvidos puderam ouvir. Isso porque, enviado ao Brasil, o álbum teve o seu conceito sonoro inteiramente modificado, ganhando novos arranjos orquestrais de Roberto Menescal, em um sintomático mas não inusual menosprezo pelo gesto autoral feminino. "Dez anos depois" continua sendo um disco lindo na discografia de Nara Leão – mas não o disco que ela e Tuca conceberam.

Nara Leão e Tuca em Paris (anos 1970)

"Dracula I love you": o estático e o extático

Pouco depois, também em Paris, Tuca conheceu Jeannette Priolli, artista plástica de carreira ascendente que havia partido para a Europa para estudar gravura na École des Beaux-Arts. As duas tiveram uma bonita relação de amor e trabalho – e que teve "Dracula I love you" como um de seus frutos. O vinil prensado pela Som Livre estampa o nome de Jeannette Priolli em seu encarte: ela é indicada como a letrista de quatro de suas faixas: "Dracula I love you", "O sorvete", "Girl" e "Pra você com amor". O crédito, embora justo, consiste em uma atenuação flagrante – ou, poderíamos dizer, em um apagamento explícito – da participação de Priolli na concepção do disco. Foi ela quem, com sua pintura, criou o dispositivo imagético que deflagrou, em Tuca e em seu parceiro musical Mario de Castro, o processo de execução de uma obra singular e coesa do ponto de vista conceitual.

Tocada pelo surrealismo europeu e pela psicodelia norte-americana – neste caso, mais do ponto de vista filosófico do que propriamente visual –, Priolli produziu na primeira metade dos anos 1970 uma corajosa série de obras que perfila tipos femininos lânguidos, deslavados, mas plenos de si, energicamente concentrados, visceralizados e definitivamente sensuais, no sentido etimológico do termo. São corpos femininos alvos e longilíneos, enrodilhando-se em ornamentos que remetem ao mundo vegetal e ao mundo animal, bem como a ícones associados ao desejo: o sangue e o vinho, em taças e em cores.

Com sua pintura, Priolli escava e desvela toda uma memória cultural agregada. Seu espaço e seus personagens criados gestualmente instauram uma matriz – a mitologia bálcã de Dracula, o conde que se alimenta de sangue – conservada e simultaneamente atualizada em sequências que se ligam criativamente a esse cerne, que dele se alimentam, para irromper em contos, gravuras populares, romances góticos, espetáculos cênicos e, obviamente, no romance de 1897 de Bram Stoker. Na música de Tuca, Castro e Priolli, Dracula torna-se objeto de amor: insere-se numa malha universal de textos culturais como um encontro entre o estático e o extático. 

A pintura de Priolli ignizou a busca por uma música original e não localista, que Tuca e seu então recente parceiro Mário de Castro queriam encontrar. Imaginaram-na como um trio e realizaram-na coletivamente no Château d’Hérouville, na região da Île-de-France, onde o compositor Michel Magne instalou em 1962 um estúdio. Nele gravaram Elton John, David Bowie e os Bee Gees, entre outros artistas. Além do mistério do château, o clima de "Dracula I love you" embebe-se da sintonia entre músicos, produtores e técnicos, conquistada através de um convívio sem pressa, possibilitado pelo produtor Ives Chamberlain.

As faixas – repletas de ecos, distorções, solos, sons guturais, improvisações e aberturas vocais – incluem letras gráficas, de conotação erótica, que potencializam seu sentido na justaposição de figuras de linguagem e a partir do inesperado. Em "O sorvete", a metáfora manifesta do sexo oral ganha vulto na re-união de dois corpos, mutuamente transformados em temperatura, gosto e aparência: “O sorvete é gelado / com gosto de mel / derrete, entra, engole / chupa a minha boca / deixa minha cara colorida”. Em "Pra você com amor", uma viagem por dentro do corpo da figura amada (“com tuas veias azuis entrelaçando nos meus dedos / como se fossem teus cabelos / com teus intestinos tão compridos, meu amor / faço laços lindos, meu amor”) subverte a experiência necrofílica, removendo o registro de impessoalidade, violência e ausência de subjetividade.

Gravado na França, "Dracula" não foi lançado no Brasil até que Tuca voltasse ao país – o que aconteceu no final de 1973. Recorreu a Guilherme Araújo, que viabilizou seu lançamento pela Som Livre, já posicionada como uma das grandes empresas fonográficas do país. Mário de Castro, que esperava ser creditado como coautor do disco, teve seu nome estampado sob a rubrica “participação especial”, o que gerou um mal estar imprevisto. Encaminhadas à Censura Federal, três letras do disco, todas de Priolli, foram vetadas – as duas mencionadas anteriormente, mais a faixa-título –, ensejando recursos, escritos pela própria Tuca, que resultaram bem-sucedidos. A capa proposta por Tuca para o disco foi sacrificada, no entanto, pela censura interna à Som Livre: em lugar da pintura matricial de Jeannette Priolli, um retrato de Tuca extraído de um ensaio fotográfico feito às pressas mutilou o sentido uno (enquanto conceito) e partilhado (enquanto processo) do disco – por cujo êxito a gravadora que o lançou nunca trabalhou.







A capa de Dracula I love you na versão lançada pela Som Livre, em 1974

Capa original de Dracula I love you, com a reprodução da pintura Reflexions, de Jeannette Priolli, lançada em 2020

Um debate

Com essas características e enfrentamentos, não é nada espantoso que "Dracula I love you" tenha sido um projeto rapidamente engavetado por uma gravadora regida antes pela lógica de acomodação ao mercado do que por qualquer defesa ardorosa da inventividade e da liberdade artística. O gélido clima de "Dracula I love you" foi, se é que se pode dizer, guardado na geladeira. Não se sabe quantas cópias do disco foram feitas; provavelmente, tão poucas quanto necessário para honrar o contrato com Tuca. Como consequência, não é também de surpreender que sua presença na memória musical brasileira tenha sido tão pálida quanto as personagens lânguidas que aborda ou sugere. 

A morte precoce e trágica de Tuca, em 1978, contribuiu para transformar esse disco – o último de sua carreira – em uma obra maldita, alienada da linguagem da música popular brasileira e, por conseguinte, apagada de sua história. O vinil da Som Livre transformou-se, assim, em objeto de culto e fetiche, dotado inclusive de aura algo mística, enigmática, como um segredo a ser sussurrado apenas entre fervorosos iniciados.

No Brasil, a Joia Moderna Discos procurou reeditar "Dracula I love you", esbarrando na dificuldade de obtenção de autorizações dos herdeiros. A organização suíça sem fins lucrativos United Music Foundation também tentou viabilizar um relançamento oficial que incluiria, além da capa original de Jeannette Priolli, uma nova masterização feita a partir das fitas originais encontradas. Gravações inéditas contemporâneas ao disco, que estavam em poder de Mário de Castro, também foram recolhidas pela organização, em mais uma triste subtração do patrimônio sonoro nacional para o controle de entidades estrangeiras.

Nas bordas da institucionalidade, tem sido graças a ouvintes continuamente extasiados que o legado genial de Tuca se preserva e, ainda que lentamente, se esparrama. Uma comunidade sobre a artista no Orkut, criada em 2006 pelo historiador Rogerio Oliveira, constituiu-se como um primeiro espaço de articulação e intercâmbio entre admiradores. A disponibilização não-oficial dos discos de Tuca no extinto blog Loronix e de "Dracula I love you" no YouTube dinamizou o compartilhamento de experiências de escuta. Hoje, uma página no Facebook administrada por Oliveira e por César Gearini garante ressonância a essas trocas vivas e criativas, tão ou mais eficazes na revigoração da memória de Tuca quanto lançamentos regulados por contratos.

Nessa perspectiva, o bootleg mencionado no início deste texto é não somente motivo de celebração, mas antes o reflexo de uma ação coletiva sem a qual a transmissão cultural e memorial da arte – ela mesma coletiva, enquanto acontecimento – não se realizaria. A textura sonora da reedição de 2020 de "Dracula I love you" pode até ser a de uma reprodução apenas ligeiramente otimizada de faixas ripadas do LP de 1974. Trata-se porém de uma marca da fatura perdoável numa homenagem que tem como principal mérito o de colocar os pingos nos is no tocante à participação de Jeannette Priolli na gestação do disco: finalmente, ele ganha a capa que não deveria ter deixado de ter. No buraco negro silencioso onde a música da gigante Tuca continua encerrada, todo sopro de som é uma esperança de descoberta e um gesto pela preservação do patrimônio musical e da memória artística brasileira.



Ricardo Santhiago é historiador e comunicólogo. É professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde coordena o Centro de Memória Urbana (CMUrb) e o Amabile – Arquivo da Memória Artística Brasileira. É autor e organizador de diversas obras, dentre as quais se destacam os livros Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras (2009) e Alaíde Costa: faria tudo de novo (2015).


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