Amigo ao Peito

Para os Estudantes

domingo, 19 de agosto de 2018

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Dessa vez vou escrever para os estudantes de violão – e sem as gracinhas habituais que o assunto é sério. 

Nos anos 50, Jodacil Damaceno assistiu a um filme de um recital de Segovia, numa exibição no consulado americano, no Rio de Janeiro. 30 anos depois, assisti a Segovia pela primeira vez, o mesmíssimo filme, mas num vídeo cassete na casa do violonista Renato Isidoro. Hoje este mesmo filme está disponível em diversas páginas do Youtube.

Assistir a este filme mudou minha vida musical, da mesma forma que mudou a de Jodacil. Uma coisa é ouvir gravações, mas a imagem ali, mostrando tudo, impacta de uma forma diferente. Minha geração e a de Jodacil é separada por mais de 30 anos. Ele nasceu em 1929, eu em 63. Mas tivemos acesso basicamente às mesmas coisas, era difícil conseguir uma partitura, quando tínhamos acesso a alguma, eventualmente tínhamos que copiar à mão. Discos eram poucos e caros, e assistir a Segovia mudava tudo, nos assustava, nos assombrava. Não é possível descrever esse tipo de emoção para quem tem milhões de vídeos disponíveis. E esse me parece ser um enorme problema. De um momento para o outro, mudou tudo. Agora qualquer um publica um vídeo, são milhares, todo mundo elogiando em troca de likes. Como filtrar?

O querido Sidney Molina, violonista do Quaternaglia e crítico da Folha, escreveu uma excelente tese de doutorado (que brevemente virará um livro fundamental: “O Violão na Era do Disco: Interpretação e Desleitura na Arte de Julian Bream”)  na qual, entre outras coisas, menciona o fato de nosso repertório ter sido construído quase que conjuntamente às gravações. Pela primeira vez, gravações e partituras andaram juntas. Fugindo um pouco, a gravação de Bream das “Bagatelas”, de William Walton: ele comete algumas liberdades com o texto que não estão na partitura original. Praticamente todos os intérpretes que vieram depois fazem o mesmo, a gravação foi mais impactante que a partitura. Voltando:

O cidadão resolve estudar violão. Vai buscar gravações pela web. Antigamente, eram poucas e conhecidas. Praticamente todos os violonistas as sabiam de cor, então havia uma crítica geral, cada um discutia as vantagens e desvantagens desta ou daquela versão. Surgia um disco novo, praticamente todo mundo tirava cópias em fita e ouvia até cansar. Havia espírito crítico. Hoje, como fazer? Como começar a procurar? Os da antiga, como eu, vão aos antigos, mas sem referência fica difícil. Quem é bom? Quem é ruim (sim, temos questões filosóficas quanto a esses conceitos,  mas lá pelas tantas tem coisa que é boa e tem coisa que é intragável. Politicamente correto tem hora!), quem não fede nem cheira, etc. 

Então seria interessante os professores desenvolverem a visão crítica dos alunos, não dizendo do que eles devem gostar ou achar, mas mostrando características específicas. O andamento, se está constante, a pulsação, as acentuações, e mesmo a beleza da coisa; falar em beleza não é muito comum, mas precisamos parar de fingir que ela não existe. Em suma, aprender a utilizar essa ferramenta tão importante. E aprender a usar também significa não fazer de muleta. É muito comum uma formação mal feita “obrigar” o estudante a ouvir uma versão gravada antes de estudá-la. Isso é um enorme equívoco, o aluno passa a tocar uma colcha de retalhos sem personalidade. E além disso, utilizar partituras confiáveis. O grande violonista uruguaio Eduardo Fernandez, num juri de concurso, ao ouvir uma versão totalmente doida da Fantasia VII de John Dowland:

– Acabamos de ouvir a fantasia VII de John DOWNLOAD...

Então, não basta ter as melhores ferramentas: é preciso saber usar. Lembro do meu impacto ao ouvir a gravação de Sergio Abreu dos estudos de Fernando Sor: eu tocava algumas daquelas músicas; as notas eram as mesmas, mas ali havia uma música que eu jamais percebera. Aquilo abriu minha cabeça de uma forma que me afeta até hoje – e nunca pensei em imitar, seria impossível. Outra situação foi tendo aula com Henrique Pinto. Conversando, comentei que achava a Sonata de Alberto Ginastera uma coisa horrorosa, não fazia sentido nenhum. Ele pegou um LP do já citado Fernandez e botou para eu ouvir. Não me apaixonei pela música, mas pela primeira vez a entendi. Aquela algaravia pela primeira vez tomou forma real nos meus ouvidos. Fui orientado a partir de uma gravação. 

Então, uma audição consciente pode ser importante, além de, é claro, ouvir música como um todo. Piano, orquestras, tenho especial predileção por quartetos de cordas, eles ajudam muito a desenvolver o ouvido, as separações de vozes, fraseado... Sugiro então que o estudante que me lê ouça várias versões da mesma música, selecione 3 ou 4, e decida qual lhe agrada mais, mas tendo um porquê. Justifique a escolha. Faça o mesmo com quartetos, começando por Haydn, mais fáceis de acompanhar, e belíssimos. Discuta com seus colegas estudantes, proponha o mesmo exercício. 

Vou repetir: espírito crítico se desenvolve. Sem ele, fica difícil sair do lugar: se tudo é bom, nada é ruim. Se nada é ruim, na verdade nenhuma coisa é boa. Depois dessa filosofia profunda me despeço, desejando que os alunos que me lêem aproveitem essa maravilha que tem nas mãos e sejam músicos de primeira - e felizes. No futuro vou falar nisso, se escolheu trabalhar, viver de arte, é para ser feliz. E muito.


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