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Portela, a azul e branco que abriu asas para o samba de Toninho Geraes

Por: Gabriela Rodrigues

sexta, 20 de setembro de 2019

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Poderosa, altiva e detentora de uma força tamanha, ela sobrevoava pelos vastos céus brasileiros. Sempre observando com extrema profundidade, avistou de longe o seu reinado na terra. E foi em 1923, em Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio de Janeiro, que a “Rainha dos Céus” encontrou seu trono em solo fértil. Era azul e branco, como a sua casa, e atendia pelo nome de Portela. O bom presságio foi anunciado.

Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, a mais antiga em atividade permanente, participou de todos os desfiles da cidade, foi campeã do primeiro concurso (não oficial) em 1929 e é a maior campeã do carnaval carioca, contribuindo ricamente para o samba e cultura nacional. Essas são algumas das muitas honras que a Escola carrega no peito, sua herança pode ser comprovada em um recheado time de artistas que vestem o manto sagrado durante os 96 anos de trajetória, como Paulo da Portela, Alcides Dias Lopes, Heitor dos Prazeres, Antônio Caetano, Antônio Rufino, Manuel Bam Bam Bam, Natalino José do Nascimento, Candinho, Cláudio Manuel, Aniceto da Portela, Mijinha, Manacéa, Argemiro, Alberto Lonato, Chico Santana, Casquinha, Alvaiade, Colombo, Picolino, Candeia, Waldir 59, Zé Keti, Wilson Moreira, Monarco, Noca da Portela, Paulinho da Viola, Clara Nunes, Teresa Cristina, Tia Surica, João Nogueira, Diogo Nogueira, Nilze Carvalho, Zeca Pagodinho e, é claro, um dos brilhantes artistas da nobre linhagem de sambistas que fazem sucesso na azul e branca, TONINHO GERAES.


Iniciando a noite muito bem abençoados pela “Majestade do Samba”, Moacyr Luz (um dos mais consagrados compositores da música brasileira) dá o tom maior da noite acompanhado do Samba do Trabalhador, um movimento de resistência cultural que nasceu no Clube da Renascença, ganhando destaque nas rodas. 

Com Gabriel Cavalcante e Alexandre Nunes (ambos no cavaquinho e voz), Nilson Visual (surdo), Daniel Neves (violão 7 cordas) e Álvaro Santos, Mingo Silva, Luiz Augusto e Junior de Oliveira (percussão), o potente grupo abriu a noite tocando “Vida da Minha Vida” (Moacyr Luz/Sereno), fazendo um aquecimento pro povo começar a sambar. “Chega de Saudade” manda a tristeza embora em uma singela homenagem aos poetas Tom Jobim e Vinicius de Moraes. E o samba foi saindo procurando as composições de ícones da nossa música, achando Francisco Buarque de Hollanda, o nosso Chico do “Quem te viu, quem te vê”.

Com tantas homenagens, o suingue logo foi “Batendo a Porta” e pedindo licença para o portelense João Nogueira também entrar na roda. Paulo César Pinheiro gostou e foi entrando na educação, “como é que vai? saúde boa?”, Moacyr logo fez as honras, “pode entrar, a casa é sua” por direito. E o batuque rolava a solta, o samba foi ficando gostoso, o feijão tropeiro cheirava desde o almoço e Juninho Baú colocava "muito louro e blá-blá-blá”. De barriga cheia, o povo seguia a cantar: “Mandinnnnga! Mandingueiiiiiiro!”; e a gente se perguntava com o sorriso no rosto e o copo na mão, “Que o batuque é esse?”, era o som de primeira do Trabalhador no fundo do quintal de Oswaldo Cruz.

A Bahia de Assis Valente se fez presente para enfatizar que “chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor” porque o “preto pode ter o mesmo que você”. E assim, os pandeiros de Álvaro Santos, Mingo Silva, Luiz Augusto e Junior de Oliveira fizeram o que o mestre mandou: “Brasil esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros, que nós queremos sambar”. Os quatro pandeiros quebraram tudo fazendo a noite de sereno fervilhar cada pé sob o chão da Portela.

É Noca, “É Preciso Muito Amor” pra aguentar a emoção de uma abertura como essa, “Toda Hora” o coração disparava com esse “Som do Brasil” de Sereno e Moa, “e o povo começa a cantar, lá laia laiá”

Se despedindo do palco, Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador deixam os mandamentos da antiga: 

“A jura é pra quem rezar
A reza é pra quem jurar
A alma pra sempre é do criador
Maré muda com o luar
Futuro é pra quem lembrar
Se é isso que o pai ensinou
Cabô
Cabô, meu pai, cabô”

Assim, o Rio que passa pelas vidas e transborda as almas, trouxe para o palco da Portela um dos ouros de Minas: TONINHO GERAES!

“Mais Feliz”, é desse jeito que Toninho pisou no palco da sua amada escola, que abrigou o rapaz de Belo Horizonte em suas asas da liberdade. Realmente, foram feitos um pro outro de encomenda, rompendo as fronteiras do país para declarar seus amores em versos de samba.

Cantando pela primeira vez os seus maiores sucessos em um único show, fruto de seus três discos mais recentes - “Preceito” (2009), “Tudo que Sou” (2014) e “Estação Madureira” (2017), Toninho (bom sujeito do samba que é), não poderia deixar de “beber um conhaque, um chopp gelado” para refrescar as cordas vocais que iriam pegar fogo enquanto cantava seus sucessos indiscutíveis. 

Durante o show a gente percebeu o porquê de tanta honra e prosperidade que Toninho é coroado ao longo de sua carreira musical. Com um estilo inconfundível, o compositor tem uma lista infinita de letras fenomenais gravadas por renomados bambas, em “ uma coleção de sambas cheios de personalidade e intérprete de valor da própria criação”. Uma delas é “Toda Hora”, clássico composto em parceria com Moacyr Luz e eternizado na voz de Zeca Pagodinho. Geraes assina embaixo para garantir: “Eu sou da madrugada, me respeite. Que eu sei a hora de ir trabalhar”!

Em seguida, outro hino da música brasileira (que ficou mundialmente conhecida na voz malandra, suingada em um grave aveludado de Martinho da Vila) ganha espaço no show, “Mulheres”, uma canção que ficou na boca do povo e até possui outra versão mais contemporânea e engajada. Muita gente não sabe, mas o mérito por detrás dessa canção é do mineiro, que confidencia para nós em seu show que Martinho sempre dizia que "queria ter feito composições como as de Antônio”, até porque Da Vila sabia que tudo que Toninho Geraes tocava, virava ouro, pois nele existia a magia das Minas pintadas em verde e amarelo. O mineiro também nos confessou que é apaixonado e grande admirador das canções de Martinho, que sempre traz as tradições do calango, do jongo e do partido alto para enriquecer o seu samba, causando uma “Disritmia” das boas em quem se delicia com suas frases melodiosas. E a Vila canta Geraes e Geraes canta a Vila.


Emocionado, Toninho Geraes abre um espaço na roda para convidar seu filho amado, Alison Geraes, para cantar a majestade do samba, João Nogueira. E o “Espelho” da vida reflete o talento de Toninho em Alison, que no canto achou seu sopro de vida pra voar, e vai no tempo cantando o samba que Paulo César Pinheiro também compôs, sabendo que ali, nos “céus” da Portela, o seu velho Toninho tem vaidade e orgulho de seu filho ser igual seu pai”. Eh, vida voa…

“Um Samba de Saudade” convoca a cantora Ale María (que integra o time de backing vocals do mineiro), com seu sangue que também traz o azul e branco (dos nossos hermanos da Argentina) para cantar esta declaração de amor ao lado da “Alma Boêmia” que é Toninho

E quem nunca ouviu:

“Morro dos prazeres
Que você me dá
Quando eu não sair de marola
Eu vou te levar
Você dorme cedo
Eu só vou deitar
Quando dou o tom na viola
Pro galo cantar”

Esse é mais um dos sucesso de Toninho Geraes, e ele não para por aí. É que “quem tem a alma boêmia não consegue segurar. É que o samba pega que nem feitiço e quando o pega” ele só sai quando o sucesso estourar. Realmente ele não está para brincadeira, genuíno compositor e intérprete de samba, que além das letras de riquíssimas sílabas, ainda traz uma carga cultural em abundância.

Não poderia faltar as homenagens aos terreiros que serviram de berço ao samba. Sabendo disso, Toninho Geraes reza em cantos de pontos pra sua fé. “Ogum de Ronda” entra com o poder de sua espada, o guardião da terra e major dos orixás guerreia pela paz de seus filhos enquanto a oração é prestado. Logo a divindade do clã de Ogum é invocada, a Lua brilha em sua natureza, e o povo clama “Okê, arô, Oxóssi, okê, okê”:

“Eu vi chover, eu vi relampear
Mas mesmo assim o céu estava azul
Samborê, pemba, é folha de jurema
Oxóssi reina de norte a sul”

Representando Odé, o palco recebe o caboclo da mata com sua calça branca rendada, suas cores azul e verde, a saia curta enfeitada, ojá e couraça prateada e na mão, ofá, iluquerê. Não importa os múltiplos sincretismos que é sujeitado, seja como São Jorge ou como São Sebastião, “Oxóssi é quem manda nas bandas do meu coração”. Assim, Toninho vai caminhando para o fim de seu show.

A última convidada da noite é uma das promessas da nova geração do samba, a revelação Marcelle Motta. Com suas enormes tranças rosadas, a mulher de voz rouca e forte chega como a “Rainha Ginga”, destemida conhecedora do caminho do mar, ganhou a bandeira de Ogum, pois ele sabe que ela tem autoridade pra carregar. 


Toninho Geraes vai abrindo o caminho para Marcelle erguer sua voz em um canto/protesto de resistência que ganhou vida no projeto ÉPreta, “Pra Matar Preconceito” ela renasceu em vida de Zezé, Leci, Mercedes Baptista, Ednanci, Aída, Ciata, Quelé, Mãe Beata e Aracy, porque “pele preta nessa terra é bandeira de guerra porque vi. Conceição, Dandara, pra matar preconceito" ela renasceu! Nós renascemos! O canto segue dando força na mandinga de amor e música, para fazer Marcelle Motta sempre voltar a cantar na azul e branca.

E na força do “Preceito” do samba genuíno de Toninho Geraes, o “malungo respeita fundamento que o santo mandou respeitar”. Porque “se é da mironga tem que ser conhecedor”, e Toninho conhece mais do que ninguém. O show acabou em grande festa, mas a música de Toninho Geraes continua a nos acompanhar por onde for!

Poderosa, altiva e detentora de uma força tamanha, ela sobrevoou pelos vastos céus brasileiros. Sempre observando com extrema profundidade, avistou de longe o seu reinado na terra. Bateu fortemente com suas asas e mudou a direção do vento, fez ele soprar no Rio e trouxe de Minas um talento. A “Rainha dos Céus” encontrou sua semente do samba. Era banhado de ouro, reluzia como seus olhos e atendia pelo nome de Toninho Geraes. A liberdade, ainda que tardia, chegou no balanço das águas. O bom presságio se concretizou.




Texto por: Gabriela Rodrigues
Fonte da imagem: Divulgação 

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