Na Ponta do Disco

Que fim levou Lily Braun? (Parte 2)

terça, 24 de outubro de 2023

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Respeitável Público! Chegamos ao Segundo Ato do nosso Grande Circo Místico.

E a pergunta que paira no ar (como a equilibrista-atriz Beatriz-Agnes no circo) é: que fim levou Lily Braun?

"O Grande Circo Místico"/Contracapa.

No poema de Jorge de Lima que inspirou o álbum, Lily Braun, neta dos fundadores do circo da família Knieps, apresenta-se como uma personagem enigmática, descrita pelo poeta como sendo “tatuada no ventre” e como “a grande deslocadora”:

Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu (...)

Novamente tentamos aqui decifrar e compreender as muitas camadas que o poema, a história e o álbum nos propõem.

Antes de tudo pela forma que inicialmente Naum de Souza compreendeu essa personagem para seu Balé musical, e que, depois, Chico Buarque e Edu Lobo entenderam Braun em sua poética e melodia. Mas existiu, porventura, uma Lily Braun histórica?

A resposta é sim: Lily Braun, foi uma mulher que viveu na Alemanha no final do século XIX. Era uma feminista convicta que lutou por anos pelos direitos das mulheres e pelo sufrágio universal, em uma sociedade alemã em muitos aspectos ultra conservadora. Se separou de seu marido e se casou novamente.

Mas porque Jorge de Lima escolheu em seu poema homenagear a Lily Braun histórica? E porque a chamou de “deslocadora”?

Vamos dar um fast forward para a canção de Lobo e Chico no álbum “O Grande Circo Místico”.

A primeira coisa que salta aos “ouvidos” é a interpretação de Gal Costa. Como dito no primeiro ato desse texto-circense em dois atos, cada artista escolhida para interpretar as canções, de Gilberto Gil a Zizi Possi, passando por Tim Maia e Milton Nascimento, parece ter sido escolhida a dedo para estar lá.

Gal Costa, que nos deixou há quase um ano e aniversariou recentemente, no dia 26 de setembro, foi a voz que deu vida a Lily Braun e sua enigmática história.

A segunda coisa que percebemos na canção é que ela tem uma forte linguagem poética que também é altamente cinematográfica. Não exatamente como “Domingo no Parque” de Gilberto Gil e seus famosos “closes eisensteineanos”, mas literalmente cinematográfica na forma que a 7ª arte se comunica. Na letra, isso surge múltiplas vezes: “me chuparam feito um zoom”, ou “comer fotografia” – “de close em close”, e ainda “como no cinema”. Além disso, em vários momentos são utilizados termos em inglês como “scotch”, “blues”, “star”, etc. Tudo isso nos remete a um clima da “era de ouro” do cinema entre 1930 e 1940, gerando uma atmosfera dos filmes noir por meio dos temas clássicos do “dancing” criando a ideia de que estamos junto com a personagem principal em algum tipo de “espelunca” ou cabaré das décadas de 1930- 1940. Um local lúgubre, tudo a meia luz, com sujeitos suspeitos de terno e chapéu, com uma mulher no palco cantando temas de Gipsy jazz e Chansons. Tudo isso, claro, é reforçado pela construção musical de Edu Lobo que automaticamente nos joga para o trio de jazz com sopros, baixo acústico junto com piano e voz. Lembremos também que trata-se de umas das faixas do álbum assinada pelo genial trompetista Marcio Montarroyos.

O pulo do gato para entendermos de onde vem tantas inspirações imagéticas é o filme Der Blaue Angel (O Anjo Azul) de 1930. O filme que está na chave do expressionismo alemão é justamente sobre o amor de um professor de ginásio (Emil Jannings) que, incomodado pelos seus alunos frequentarem um Cabaré chamado “Anjo Azul” próximo à escola, acaba indo lá para dar uma lição de moral nos pupilos, mas termina se apaixonando perdidamente por Lola (Marlene Dietrich), a principal dançarina do local. A história segue com o professor sendo ridicularizado pelos alunos, uma vez que ele se colocava como um bastião da moral e foi se apaixonar justamente pela “dama do cabaré”. No final o professor casa com Lola, mas tem um desenlace trágico ao se ver traído, sem emprego, desprezado e sozinho.

"O Anjo Azul", pôster de divulgação.

Tudo isso, obviamente foi a inspiração para Chico pensar no termo “Anjo Azul” que aparece na letra da canção como “galanteio” do “homem dos meus sonhos”. Vale ressaltar que assim como havia uma inclinação poética de Jorge de Lima para a Prússia e o Império Austro-húngaro, Chico Buarque busca no mesmo local geográfico aproximado uma outra Lily Braun, no caso a dama do Cabaré, Lola, do filme alemão em questão que, não por acaso, é da mesma década do poema de Lima.

Assim, depois de examinar essas muitas camadas da canção como podemos entender o destino de Lily Braun? Para isso devemos voltar ao começo de tudo: o poema de Jorge de Lima.

Entendemos que como em um filme que podemos rebobinar ou ir para frente, a personagem Lily Braun faz o mesmo: desloca-se no tempo.

Na construção poética de Chico ela cede às investidas amorosas do seu insistente pretendente, mas vê sua vida ir das aventuras do Circo a uma vida negada pela agruras de uma recém casada com um marido controlador: nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drink no dance – exatamente como na narrativa de Lola em “Anjo Azul”.

Mas, ao mesmo tempo, logo depois ela muda ou “desmuda” a sua escolha ao declinar do seu pretendente dizendo – “depois dele chegar como ‘dez poemas e um buquê’”: “Eu disse adeus, já vou com os meus numa turnê”. E isso curiosamente é reforçado com um compasso composto que Edu Lobo cria logo após a letra em questão, dando a impressão de um “deslocamento temporal” da música. Ademais sua enigmática tatuagem de “santo no ventre” entre o “sagrado” e “profano” permanece.

Como em um filme, Lily se desloca, e do futuro “retorna a fita” para mudar o roteiro do seu passado: casou e não casou.

E talvez hoje possamos conferir ainda mais ênfase à interpretação lindíssima de Gal Costa a essa canção que casa como uma luva para sua voz, assim como à persona artística que Gal construiu ao longo de sua carreira.

Tal como Lily Braun, Gal viveu e foi mulher e isso basta. Deslocou-se; transmutou-se como canção: ao findar-se, existe com mais força e potência em nossas mentes e corações. Como a lembrança que temos, quando crianças, do circo que passou em nosso bairro deixando saudades. Assim como nossas mais tenras memórias afetivas pueris, o Grande Circo Místico representa a própria vida.

Lily Braun e Gal Costa: esse devir feminino está, em minha opinião, na mais linda e enigmática canção do álbum, que se funde em seus múltiplos sentidos ao próprio enigma da vida – como na experiência de um Grande Circo Místico que é: eterna, efêmera, incontrolável, inefável, misteriosa e mística.

Ao escutarmos “Lily-Gal” damos vida ao todo que é mistério profundo.

Edu Lobo, Gal Costa e Chico Buarque.

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